Agora é lei em Mato Grosso: sob o pretexto de beneficiar pequenos produtores, medida controversa atropela alertas científicos e libera agrotóxicos perigosamente perto de rios e comunidades no estado campeão em uso de veneno agrícola.
A porteira não foi apenas encurtada, foi escancarada para o avanço dos agrotóxicos em Mato Grosso. Numa manobra que acende o alerta máximo, a Assembleia Legislativa (ALMT) não só aprovou, como agora viu seu presidente, Max Russi, promulgar uma lei que dinamita as distâncias mínimas de proteção contra a pulverização desses produtos. Tudo isso aconteceu após uma conveniente omissão do governador Mauro Mendes (União Brasil), que preferiu lavar as mãos, perdendo o prazo legal para sancionar ou vetar a bomba relógio. Ao que tudo indica, Mendes optou por não confrontar a ALMT, mas também evitou carregar o fardo da sanção direta, deixando o ônus da decisão final para o Legislativo.
O resultado? Uma legislação que rasga salvaguardas essenciais a nascentes, rios e povoados. Para pequenas propriedades, a nova regra é a ausência de regras: os limites podem, simplesmente, ser ignorados. Enquanto um setor do agronegócio pode comemorar o “alívio”, a comunidade científica, ambientalistas e especialistas em saúde pública estão em estado de choque. E não é exagero: Mato Grosso já ostenta o vergonhoso título de maior consumidor de agrotóxicos do Brasil.
Na prática, o que esse sinal verde para o veneno significa?
No centro dessa tempestade está o Projeto de Lei 1833/2023, uma proposta do deputado estadual Gilberto Cattani (PL). Aprovado a toque de caixa em 19 de março de 2025, o texto reescreve – para pior – a Lei 8.588 de 2006, que tentava impor alguma ordem no caótico cenário de uso, produção e transporte de agrotóxicos no estado.
A primeira manobra, um clássico truque de marketing, foi rebatizar “agrotóxicos” para “defensivos agrícolas”, numa tentativa de suavizar o impacto. Mas o veneno continua o mesmo, e agora mais perto. As novas distâncias para pulverização variam conforme o tamanho da fazenda, numa lógica que desafia a precaução:
- Pequenas propriedades (até quatro módulos fiscais): Aqui, a licença para contaminar é total. A aplicação está liberada, não importa a proximidade de áreas sensíveis. Repetindo: os limites podem ser zerados. Um cheque em branco para o perigo.
- Médias propriedades: A “proteção” encolheu para míseros 25 metros.
- Grandes propriedades (acima de 15 módulos fiscais): Devem, teoricamente, respeitar 90 metros de povoados, cidades, fontes de água e moradias.
E, como se não bastasse, se uma grande propriedade fizer divisa com uma pequena ou média, a regra dos 90 metros da linha de confronto deve ser seguida pela maior – uma concessão mínima diante do estrago permitido.
Para entender o “módulo fiscal” e o tamanho do problema
O “módulo fiscal” é uma unidade de área definida pelo INCRA, que varia por município. Em Mato Grosso, pode ir de 70 a 110 hectares.
- Exemplo do perigo: Numa cidade com módulo fiscal de 100 hectares:
- Uma “pequena propriedade” (até 4 módulos) pode ter até 400 hectares (o equivalente a 400 campos de futebol!) e pulverizar veneno sem qualquer restrição de distância de um rio ou escola vizinha.
- Uma “grande propriedade” (acima de 15 módulos) teria mais de 1.500 hectares.
Essa variação mostra que a “liberação” para pequenas propriedades, vendida como um benefício, pode, na verdade, expor áreas consideráveis e suas populações a um risco incalculável, dependendo do tamanho do módulo fiscal local. É uma flexibilização perigosa sob o manto de uma medida social.
Um retrocesso brutal na proteção ambiental e sanitária
Comparar com o que valia antes é entender a dimensão do desastre. O Decreto nº 2.283/2009, agora letra morta, exigia:
- 300 metros de distância de povoados e fontes de água para consumo humano.
- 150 metros de outras fontes de água e moradias.
- 200 metros de nascentes.
Vale frisar que o Ministério Público de Mato Grosso já havia lutado e vencido na Justiça para restaurar distâncias mais seguras, derrubando um decreto estadual de 2013 que ousara flexibilizar essas normas. A história se repete, agora como farsa e com consequências potencialmente trágicas.
A toque de caixa: a questionável tramitação e a promulgação
A aprovação do projeto na Assembleia, em 19 de março de 2025, teve a oposição ferrenha, porém minoritária, dos deputados Lúdio Cabral (PT), Valdir Barranco (PT) e Wilson Santos (PSD). A velocidade da tramitação, em regime de urgência, levantou um coro de críticas de ambientalistas, que viram na pressa uma forma de evitar o debate público aprofundado. Durante a votação, alertas sobre os impactos soaram no plenário, com Lúdio Cabral tentando, em vão, adiar a decisão. A maioria, no entanto, preferiu ignorar os apelos.
Depois da aprovação, o projeto seguiu para o governador Mauro Mendes. O prazo para sua manifestação esgotou-se, e até 25 de abril, nenhuma resposta oficial havia sido dada. Foi nesse vácuo, nessa calculada omissão, que a legislação foi promulgada pelo presidente da ALMT, efetivando-se em todo o estado.
O discurso oficial: “beneficiar o pequeno produtor”
Os defensores da lei, como o deputado Eduardo Botelho (União), alegam que a medida visa dar “melhores condições” aos pequenos produtores. “O país não pode ser apenas a ‘reserva de oxigênio’ do mundo enquanto nossa população passa por dificuldades. Precisamos produzir,” declarou Botelho, ecoando um discurso que coloca produção e preservação em lados opostos.
O autor do projeto, Gilberto Cattani, insistiu que as distâncias anteriores prejudicavam a produção e a economia devido ao “alastramento descontrolado de pragas”. Um argumento que, para os críticos, serve de cortina de fumaça para os verdadeiros interesses em jogo.
O grito de alerta da ciência e da sociedade civil
A resposta da comunidade científica e de organizações socioambientais foi imediata e contundente. Mais de 40 entidades subscreveram uma carta-denúncia ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, expondo os perigos da proposta para as comunidades rurais.
Wanderlei Pignati, renomado professor e pesquisador da UFMT, não mediu palavras: “Os impactos, que são graves, vão aumentar. Com esse projeto, agora [podem] pulverizar até o seu pé, se você botar o pé fora da sua casa.” A imagem é desoladora.
Uma nota técnica de especialistas foi taxativa ao destacar a “necessidade de manter distâncias mínimas adequadas… garantindo a proteção da biodiversidade, a segurança alimentar e a saúde das populações locais”. O documento reforça, com base em estudos científicos, a urgência de um limiar de segurança de pelo menos 300 metros.
O deputado e médico Lúdio Cabral (PT) trouxe dados alarmantes: “Mato Grosso é o que mais consome agrotóxicos, em média 67 litros por habitante por ano. Nós temos uma prevalência elevadíssima de problemas graves de saúde nas áreas onde o consumo é maior.”
As consequências previsíveis: um futuro contaminado
Os estudos citados na nota técnica são um prenúncio sombrio: efeitos negativos como extinções locais, mutações genéticas e malformações já foram detectados a mais de 250 metros das áreas tratadas. Com a pulverização liberada tão perto de nascentes e cursos d’água, a contaminação dos recursos hídricos é uma ameaça concreta e iminente.
Especialistas são unânimes: a lei ignora o princípio da precaução e os pilares da sustentabilidade. Além dos danos ambientais e à saúde, a reputação dos produtos agrícolas de Mato Grosso pode ser severamente comprometida em mercados internacionais, cada vez mais exigentes com padrões socioambientais.
Mato Grosso: gigante do agro, gigante na irresponsabilidade?
Sendo o maior produtor nacional de grãos (28% do total, segundo o IBGE), as decisões tomadas em Mato Grosso sobre agrotóxicos ecoam por todo o país e além-fronteiras. Esta nova lei arrisca intensificar ainda mais o uso de veneno em um estado já afogado em estatísticas negativas, agravando um cenário de crise sanitária e ambiental.
E agora? Um cheque em branco para o desastre
A promulgação desta lei é um marco perigoso. A dita “promessa” de facilidades para pequenos produtores mascara um risco gigantesco para a saúde coletiva e para o já combalido meio ambiente. O dilema entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental foi resolvido da pior forma possível: atropelando a ciência e a cautela.
Resta à sociedade civil e aos órgãos de fiscalização independentes monitorar de perto os efeitos práticos desta legislação nefasta. É preciso avaliar, com urgência, o impacto real sobre as comunidades rurais, a qualidade da água e dos alimentos, e a já questionável sustentabilidade ambiental de Mato Grosso. A novela do veneno ganhou um capítulo trágico, e as próximas cenas podem ser ainda piores.
Para entender melhor: As novas (e perigosas) distâncias em Mato Grosso
Com a lei promulgada pela ALMT, as regras para pulverização de “defensivos agrícolas” (leia-se agrotóxicos) são:
- Pequenas propriedades (até 4 módulos fiscais): Sem distância mínima obrigatória de áreas protegidas. Risco liberado.
- Médias propriedades: Distância mínima de 25 metros. Uma piada de mau gosto.
- Grandes propriedades (>15 módulos fiscais): Distância mínima de 90 metros. Insuficiente, segundo especialistas.
- Comparativo (o que foi perdido): Antes, exigiam-se de 150 a 300 metros de proteção. Um padrão de segurança agora desprezado.
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