Análise de Carolina Guedes, da Universidade Federal de Uberlândia, em seu trabalho “A proteção das Terras Indígenas no Brasil. Uma análise a partir da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, desnuda a persistente violação de direitos e a urgência de ações efetivas.
A proteção das terras indígenas no Brasil é um drama com capítulos que se arrastam. Enquanto leis e tratados internacionais existem no papel, a realidade no campo, infelizmente, ainda é marcada por violações sistemáticas, como as que continuam a vitimar os povos Yanomami e Munduruku. Um estudo aprofundado, intitulado “A Proteção das Terras Indígenas no Brasil. Uma análise a partir da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, de Carolina Barbosa Guedes, recentemente apresentado à Faculdade de Direito Professor Jacy de Assis da Universidade Federal de Uberlândia como trabalho de conclusão de curso em 2025, mergulha nessa ferida aberta. A pesquisa, orientada pela Profa. Dra. Cláudia Regina de Oliveira Magalhães da Silva Loureiro, questiona a real eficácia dos mecanismos de proteção. Afinal, o que impede que o direito, tão debatido e legislado, transforme efetivamente a vida e garanta a segurança desses povos?
Um olhar crítico sobre a conservação: o mito da “natureza intocada”
Para entender o presente, é crucial revisitar o passado. A história da conservação ambiental no Ocidente carrega contradições significativas. O modelo que inspirou os parques nacionais dos Estados Unidos no século XIX, por exemplo, partia de uma premissa bastante problemática: a de que a “natureza selvagem” só existiria onde não houvesse presença humana. Essa visão, contudo, convenientemente ignorou que muitos desses espaços eram, há séculos, habitados e manejados por povos indígenas.
Essa mentalidade pavimentou o caminho para a exclusão sistemática de comunidades tradicionais, tratando seus territórios como se fossem desabitados – um equívoco que, surpreendentemente, ainda ecoa em muitos projetos de conservação atuais. A separação radical entre “ser humano” e “natureza”, tão característica do pensamento ocidental, desconsiderou que inúmeras paisagens tidas como “intocadas” eram, na verdade, o resultado de uma relação de equilíbrio e manejo sustentável promovida por esses povos.
Esse modelo, apelidado de “paradigma Yellowstone”, disseminou-se globalmente, fincando raízes especialmente em países do Sul Global. A ironia é que, sob o pretexto de proteger a natureza, governos e organizações internacionais não raro promoveram a criação de áreas de conservação à custa do despejo violento de povos originários. A própria União Internacional para Conservação da Natureza (UICN) endossou, por décadas, uma abordagem que via a presença humana como uma ameaça à preservação – uma lógica que, infelizmente, ainda influencia políticas contemporâneas.
Neoliberalismo verde e “campos sociais minados”
A chamada conservação neoliberal, marcada pela colaboração entre organizações de conservação e o setor empresarial, muitas vezes acaba por acentuar desigualdades, especialmente no Sul Global. No Brasil, não faltam exemplos de projetos de ecoturismo e parcerias com empresas privadas que foram criticados por marginalizar comunidades locais e colocar os interesses econômicos acima dos direitos humanos. Surge, então, o questionamento sobre as reais motivações por trás da criação de áreas protegidas, que podem refletir mais interesses geopolíticos ou econômicos do Estado do que uma preocupação genuína com a biodiversidade. No cenário nacional, o Estado por vezes utilizou áreas protegidas para manter controle sobre recursos naturais valiosos, como minérios e petróleo, em detrimento dos direitos das comunidades locais, minando a credibilidade das iniciativas de conservação.
Rodríguez Garavito e Baquero Díaz (2020), em sua obra sobre conflitos socioambientais na América Latina, iluminam a existência de “campos sociais minados”. Estas são áreas de intensa exploração econômica onde se concentram os piores conflitos socioambientais do nosso continente. Os autores revelam que esses territórios, frequentemente encarados como “vazios” pelas elites urbanas, são, na verdade, o lar ancestral de comunidades indígenas, camponesas e afrodescendentes – populações que constituem o verdadeiro “rosto oculto” das nações latino-americanas. A chegada de grandes projetos extrativistas nessas regiões desencadeia uma dinâmica perversa, com a sobreposição de violências: de um lado, a exploração econômica desenfreada; de outro, a ação de grupos armados e a omissão estatal.
A história brasileira, como demonstra Carvalho (2015), é um longo registro dessa violência, remontando aos primórdios da colonização. Os números são um soco no estômago: de uma população estimada em cinco milhões de indígenas em 1500, restavam meros 70 mil em 1957. Isso não foi um acidente de percurso, mas o resultado de políticas deliberadas de extermínio.
Desmatamento em queda, mineração ilegal persiste: um paradoxo?
Dados recentes do Instituto Socioambiental (ISA), referentes ao primeiro trimestre de 2024, trazem um cenário que, à primeira vista, parece contraditório. Enquanto o desmatamento em terras indígenas com povos isolados apresentou uma expressiva redução de 75,14% em comparação com 2023, a mineração ilegal continua sendo uma ameaça grave, respondendo por um quarto da área degradada mapeada.
Uma análise mais detida desses números, contudo, revela dinâmicas preocupantes. Embora as áreas desmatadas diretamente pelo garimpo tenham diminuído 88%, há evidências claras de que os garimpeiros estão migrando para novas terras indígenas, antes não afetadas. Essa mudança de estratégia criminosa exige uma reavaliação urgente das táticas de fiscalização.
O caso da Terra Indígena Munduruku é emblemático. Apesar da redução de 90% no desmatamento no primeiro trimestre de 2024, o passivo ambiental acumulado até 2023 atinge impressionantes 20.288 hectares. Regiões como o Igarapé Água Branca continuam a sofrer com a expansão de áreas já degradadas, mostrando a resiliência das estruturas criminosas mesmo diante da repressão estatal. Diante disso, o ISA aponta três medidas urgentes: o fortalecimento da atuação integrada entre Funai, Ibama e Forças Armadas; a aceleração dos processos de regularização fundiária; e a implementação de políticas que combinem repressão qualificada com alternativas econômicas sustentáveis.
A teia da proteção internacional: direitos no papel e desafios na prática
No âmbito internacional, Antônio Augusto Cançado Trindade (1997) já ressaltava a importância vital da incorporação das normas internacionais de proteção aos direitos humanos no direito interno dos Estados. Essa integração é vista como fundamental, pois o direito internacional e o interno formam um conjunto indivisível com o propósito comum de salvaguardar a dignidade humana.
A Constituição Federal de 1988, em sintonia com essa perspectiva, estabelece em seu artigo 4∘, inciso II, que o Brasil rege suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos. Além disso, o parágrafo 2∘ do artigo 5∘ determina que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes de tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte. Essa disposição reconhece o caráter especial dos tratados de direitos humanos, integrando-os ao elenco de direitos constitucionalmente protegidos e garantindo sua aplicação imediata.
Instrumentos como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) são cruciais, reconhecendo a relação especial desses povos com suas terras e territórios. Essa convenção estabelece, por exemplo, que os governos devem consultar os povos indígenas sempre que medidas legislativas ou administrativas possam afetá-los diretamente, e essas consultas devem ser de boa-fé, visando acordo ou consentimento. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (DDPI) de 2007 vai além, garantindo o direito de possuir, utilizar, desenvolver e controlar terras, territórios e recursos tradicionalmente ocupados.
Contudo a implementação efetiva desses direitos ainda enfrenta obstáculos práticos consideráveis. A mesma autora critica o modelo ocidental de conservação, que frequentemente ignora a presença histórica e os direitos dos povos indígenas.
A Corte Interamericana em cena: responsabilizando Estados
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) tem desempenhado um papel fundamental. Em sua Opinião Consultiva n. 23/2017, a Corte reconheceu a relação intrínseca entre meio ambiente e direitos humanos, enfatizando a importância dos povos indígenas na preservação de ambos. A Corte afirmou que “o direito à propriedade coletiva destes está vinculado com a proteção e acesso aos recursos que se encontram nos territórios dos povos, pois estes recursos naturais são necessários para a própria sobrevivência, desenvolvimento e continuidade do estilo de vida de tais povos”.
Casos emblemáticos ilustram essa atuação. No caso do Povo Xukuru vs. Brasil (2018), o país foi condenado pela demora e inércia na demarcação e desintrusão das terras tradicionalmente ocupadas. A sentença reforçou que a titulação de um território indígena no Brasil tem caráter declaratório, e não constitutivo, do direito. “A demarcação é direito e garantia do próprio povo que a ocupa tradicionalmente”, diz um trecho da sentença citando um perito.
Mais recentemente, a Corte IDH emitiu uma resolução em 12 de dezembro de 2023, reiterando a obrigação do Estado brasileiro de reparar os danos causados pela invasão de mineradoras e garimpeiros nas terras indígenas Yanomami, Munduruku e Ye’kwana, e pela falta de fiscalização governamental. Essa decisão seguiu uma resolução anterior, de 1º de julho de 2022, que já determinava a proteção urgente desses povos devido à extrema gravidade da situação, incluindo “ameaças, agressões físicas e sexuais, atos de vandalismo e tiroteios, contaminação de seus rios e impacto na sua saúde e seu acesso à água potável e à alimentação”.
A Corte IDH destacou mortes, violência sexual e desnutrição, agravadas pela mineração ilegal, e a contaminação dos rios por mercúrio. A situação de saúde dos Yanomami e Ye’Kwana foi classificada como alarmante. Além disso, a violência sexual contra mulheres e meninas indígenas foi amplamente documentada. O Estado brasileiro foi criticado pela ineficácia no controle do espaço aéreo e dos rios, facilitando a entrada de garimpeiros. Apesar de reconhecer alguns esforços estatais, a Corte considerou as ações insuficientes.
Para entender melhor: “Mistanásia social” e a luta contra o Marco Temporal
A negligência estatal em proteger esses povos configura o que Cláudia Loureiro (2023) denomina “mistanásia social” – a morte lenta, evitável e cruel de grupos vulneráveis, vítimas de desassistência e violência sistêmica. Nesse contexto, o Brasil se arrisca a ser responsabilizado internacionalmente por violar a Convenção Americana de Direitos Humanos.
No plano nacional, uma das batalhas jurídicas mais emblemáticas envolveu o Recurso Extraordinário nº 1.017.365, que discutiu o chamado “marco temporal”. Essa tese controversa buscava definir que a ocupação tradicional indígena só seria válida se comprovada na data da promulgação da Constituição de 1988. Em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou essa tese, por 9 votos a 2, afirmando que a data da promulgação da Constituição não é critério para definir a ocupação tradicional. No entanto, a decisão final do STF, embora tenha rechaçado o marco temporal, manteve condicionantes consideradas problemáticas por especialistas, como a indenização a ocupantes não indígenas de boa-fé. Especialistas criticam essa lógica, que equipara terras indígenas a propriedades privadas, desconsiderando seu significado cultural e ancestral. Para um “pensamento jurídico colonial” que ainda influenciaria decisões judiciais, subalternizando a história e os direitos indígenas.
Conflito com o Congresso e a Nova Lei
Apesar da decisão do STF, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701/23, que instituiu a tese do marco temporal, e derrubou o veto presidencial a essa legislação. Isso gerou um conflito direto entre o entendimento do STF (contrário ao marco temporal) e a nova lei aprovada pelo Legislativo, criando insegurança jurídica e pressão para uma solução institucional.
Processo de Conciliação em Andamento
Diante desse impasse, o ministro Gilmar Mendes, relator das principais ações sobre o tema, instaurou em 2024 uma comissão especial de conciliação para buscar um acordo entre as partes envolvidas. O processo foi prorrogado e, até 25 de junho de 2025, seguem as audiências e discussões para tentar construir um texto de consenso que possa substituir ou ajustar a lei vigente.
As reuniões têm debatido temas como:
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Atividades econômicas em terras indígenas
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Indenização a fazendeiros por restrição de uso ou desapropriação
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Sustentabilidade das comunidades indígenas
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Garantias judiciais e protocolos para reintegração de posse
O anteprojeto elaborado pelo gabinete de Gilmar Mendes é criticado por movimentos indígenas, que consideram a proposta ilegítima e prejudicial, pois prevê, por exemplo, mineração em terras indígenas e obstáculos ao processo de demarcação. Organizações indígenas defendem que o STF priorize o julgamento dos embargos de declaração sobre o tema, para reforçar a decisão já tomada de inconstitucionalidade do marco temporal, sem negociações que possam retirar direitos.
Participação e Perspectivas
A comissão de conciliação tem enfrentado dificuldades, como baixa participação de parlamentares e retirada de representantes indígenas, que alegam falta de paridade e legitimidade no processo. O próximo passo é a conclusão da análise do anteprojeto, prevista para a próxima reunião, ainda sem data definida, mas com segundas-feiras reservadas para os encontros presenciais no STF
Em situações de extrema vulnerabilidade, como durante a pandemia de COVID-19 e a invasão garimpeira, o STF também atuou por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709, exigindo ações estatais urgentes para proteger os Yanomami e Munduruku.
Um futuro em disputa: direitos indígenas como pilar ambiental
O estudo de Carolina Barbosa Guedes reforça uma verdade inconveniente: a atividade minerária em terras indígenas é uma grave violação aos direitos fundamentais desses povos, com impactos ambientais que podem ser irreversíveis. Os instrumentos jurídicos, nacionais e internacionais, têm se mostrado insuficientes para frear o avanço do garimpo ilegal. Fica evidente, portanto, a fragilidade das estruturas de fiscalização, a lentidão nos processos de demarcação e os persistentes conflitos de interesse na esfera governamental.
A pesquisa de Guedes, ao analisar a jurisprudência da Corte Interamericana e a realidade brasileira, conclui pela urgência de se adotar medidas concretas e eficazes. Mais do que nunca, a proteção aos povos indígenas revela-se fundamental não apenas para a garantia de seus direitos coletivos, mas para a preservação do meio ambiente e o equilíbrio ecológico de todo o planeta. Esses povos são guardiões tradicionais de vastas áreas de floresta e biodiversidade, com práticas sustentáveis que há séculos harmonizam a presença humana com a conservação da natureza. Ignorar seus direitos não é apenas uma injustiça histórica, mas um tiro no pé da própria humanidade, que agrava crises ambientais com repercussões que não conhecem fronteiras. A disputa pelas terras indígenas, como bem demonstra o trabalho acadêmico, permanece como um tema central no debate sobre direitos humanos e ambientalismo neste século.
Boxe informativo: Para entender melhor
Para facilitar a compreensão de alguns termos técnicos utilizados na reportagem, preparamos um pequeno glossário:
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Jurisprudência: Sabe quando os tribunais (como o Supremo Tribunal Federal ou a própria Corte Interamericana) tomam decisões sobre um mesmo assunto várias vezes e seguem uma linha de raciocínio parecida? Esse conjunto de decisões e interpretações consolidadas sobre temas específicos é o que chamamos de jurisprudência. Ela serve como um guia para casos futuros.
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Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH): É um tribunal internacional, como se fosse um “juiz dos países” para assuntos de direitos humanos nas Américas. Sua função é aplicar e interpretar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outros tratados sobre o tema. Países que não cumprem suas obrigações podem ser julgados e condenados por ela, como aconteceu com o Brasil em alguns casos citados.
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Marco Temporal: Essa foi uma tese jurídica bastante polêmica que dizia que os povos indígenas só teriam direito às terras que estivessem ocupando fisicamente no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição brasileira. O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou essa tese em 2023, entendendo que os direitos indígenas sobre suas terras são originários, ou seja, anteriores à própria criação do Estado.
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Mistanásia Social: Este termo, usado pela professora Cláudia Loureiro, descreve uma “morte lenta, gradual e evitável” de grupos de pessoas em situação de vulnerabilidade. Não é uma morte direta por violência aguda, mas sim o resultado da falta de assistência, do abandono e da negligência sistemática por parte do Estado, levando a um definhamento progressivo.
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Convenção 169 da OIT: A OIT é a Organização Internacional do Trabalho. A Convenção nº 169 é um tratado internacional específico sobre os direitos dos povos indígenas e tribais. Ela reconhece, por exemplo, a importância da terra para esses povos e estabelece o direito à consulta livre, prévia e informada sobre medidas que possam afetá-los diretamente.
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Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF): É um tipo de ação judicial específica no Brasil, julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Ela serve para proteger os princípios mais básicos e importantes da Constituição Federal quando estes são ameaçados ou violados por algum ato do poder público. Foi usada, por exemplo, para pedir proteção aos Yanomami e Munduruku durante a crise sanitária e de invasões.
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Desintrusão (de terras indígenas): Após uma terra ser oficialmente demarcada e reconhecida como indígena, a desintrusão é o processo de retirada de todos os ocupantes não indígenas que estejam irregularmente no local. É uma etapa crucial para garantir o uso exclusivo do território pelo povo indígena.
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Passivo Ambiental: Pense em um estrago deixado no meio ambiente, como o desmatamento ou a contaminação de um rio por mercúrio do garimpo. O passivo ambiental é o conjunto desses danos acumulados ao longo do tempo em uma determinada área, que precisam ser reparados ou compensados.
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