Enquanto União Europeia restringe substâncias tóxicas para proteger seus cidadãos e ambiente, empresas do continente faturam alto com a exportação desses mesmos produtos para o Sul Global, uma lógica que envenena a mesa e o debate sobre soberania alimentar.
Um fantasma ronda a agricultura brasileira, alimentando um paradoxo cruel: o país, gigante na produção mundial de alimentos, convive com a fome em pratos de milhões e uma crescente contaminação por agrotóxicos. O mais irônico? Muitos desses venenos, banidos em solo europeu por seus riscos, chegam aqui pelas mãos de empresas do Velho Continente, escancarando uma dinâmica de “dois pesos, duas medidas” que beneficia o Norte global em detrimento da saúde e do ambiente no Sul.
Raízes da desigualdade no prato
Como chegamos aqui? A resposta está na formação do Brasil. Desde a colônia, exploração e concentração de terras semearam desigualdade. Essa herança ainda nos afeta. O passado de casa grande e senzala, adaptou-se. Moldou um campo onde a riqueza de muitos virou lucro de poucos. A fome tornou-se uma sombra persistente. A Lei de Terras de 1850 apenas cimentou essa estrutura. O solo virou mercadoria, para quem já o detinha.
Modernização que exclui
O tempo avançou. Chegou a “Revolução Verde”. Prometia fartura. Trouxe tecnologias, sementes transgênicas e agrotóxicos. A produção agrícola brasileira deu um salto, é verdade. Mas a que custo? A modernização no campo, muitas vezes, significou a expulsão do pequeno agricultor, a contaminação de rios e solos, e o adoecimento de comunidades inteiras, engolidas pela lógica da monocultura e da exportação de commodities para o mercado externo. O foco virou produzir muito, rápido. Não necessariamente alimentar com qualidade. Ou preservar o ambiente. O direito à alimentação, pilar da dignidade, virou detalhe. E a comida de verdade? Foi trocada por produtos irreconhecíveis.
Leis no papel, veneno na mesa
O Brasil tem leis. No papel, soam bem. A Constituição, tardiamente em 2010, tornou a alimentação direito social. Temos a LOSAN. E a PNAPO, pela agroecologia. Então, por que somos campeões no uso de agrotóxicos? O consumo cresceu 135% em 15 anos (2000-2014). Talvez pela força do agronegócio. Ou por incentivos fiscais que dão um “empurrãozinho” a esses produtos. O Convênio Confaz 100/97 é um exemplo, reduzindo impostos para venenos e renovado sem parar. Uma verdadeira esquizofrenia legislativa, não acha?
O paradoxo europeu: lucro tóxico
Aqui, a história fica ainda mais perversa. Já ouviu “o que os olhos não veem, o coração não sente”? Parece ser a lógica de nações desenvolvidas. Cerca de 30% dos agrotóxicos usados aqui são proibidos na União Europeia. Proibidos lá, claro. Para proteger seus cidadãos e ambiente. Assim mandam suas regras. Mas quem domina quase metade desse bilionário mercado de venenos? Empresas europeias. Especialmente da Alemanha e Suíça. Gigantes como Syngenta, Bayer e BASF faturaram juntas mais de 24 bilhões de dólares em 2016 com isso.
É um jogo de empurra-empurra macabro. O glifosato, por exemplo, classificado pela Organização Mundial da Saúde como “potencial causador de alterações na estrutura do DNA e nas estruturas cromossômicas das células humanas”. Mesmo assim, é o agrotóxico mais vendido no Brasil, apesar das restrições na Europa. Eles exportam o problema, embolsam o lucro. O Brasil? Fica com a conta da contaminação. Com os doentes. E para fechar o ciclo dessa ironia amarga, parte da nossa produção contaminada ainda volta para lá, nos alimentos que exportamos. Parece piada de mau gosto.
Para entender melhor:
- LOSAN: Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional.
- PNAPO: Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.
- Convênio Confaz 100/97: é um acordo que concede a redução da base de cálculo do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) em 60% para agrotóxicos.
- Dicotomia Norte-Sul: Refere-se à divisão socioeconômica e política entre os países desenvolvidos (majoritariamente no hemisfério Norte) e os países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos (predominantemente no Sul). Essa divisão, muitas vezes, implica relações desiguais de poder e exploração.
- Revolução Verde: Conjunto de iniciativas tecnológicas implementadas a partir da década de 1960 que visavam aumentar a produção agrícola mundial, principalmente através do uso de sementes geneticamente modificadas, fertilizantes químicos e agrotóxicos.
- Soberania Alimentar: É o direito dos povos de definir suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos, garantindo alimentos saudáveis, culturalmente adequados, acessíveis, e produzidos de forma sustentável e ecológica.
Repensar o sistema, urgente!
Este cenário parece distópico. O que fazer? Uma pesquisa de Aguiar, Nascimento e Marques Júnior, publicada na Revista de Direito Econômico e Socioambiental, ilumina essa teia. Os autores são claros: precisamos repensar o modelo agrícola nacional. Urgente. Não basta produzir muito, rápido. É preciso garantir acesso a alimentos de qualidade. Alimentos seguros. Que respeitem a soberania alimentar e o meio ambiente. A busca por um Estado inclusivo, atento à saúde, passa por questionar quem lucra com o veneno em nossa mesa. Afinal, até quando o Brasil será o quintal onde se joga o que não serve para os outros?
Fonte: “Aspectos da promoção do direito fundamental social à alimentação no brasil a partir da dicotomia norte e sul no uso de agrotóxicos” de AGUIAR, Carlos Eduardo Ferreira; NASCIMENTO, João Ricardo Holanda do; MARQUES JÚNIOR, William Paiva (Revista de Direito Econômico e Socioambiental, Curitiba, v. 16, n. 2, e501, maio/ago. 2025).
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