Ministra do Meio Ambiente foi alvo de falas machistas e tentativas de silenciamento durante debate sobre temas ambientais sensíveis.
A tensão era palpável. Na terça-feira, 27 de maio de 2025, o que deveria ser um debate técnico na Comissão de Infraestrutura do Senado transformou-se num campo minado para a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Alvo de uma saraivada de declarações que ecoaram misoginia e agressividade, ela optou por uma atitude firme: retirou-se da sessão, um gesto que expôs as fraturas políticas e o machismo incrustado em corredores do poder.
Estopim da crise
A faísca para o incêndio que se alastraria pela comissão foi a convocação da ministra. Ela deveria tratar da criação de unidades de conservação marítimas no Amapá. Uma área, aliás, cobiçada pela Petrobras para exploração de petróleo na Foz do Amazonas. Marina, no entanto, buscou serenar os ânimos. Esclareceu que tais unidades, em discussão desde 2005, não impediriam a pesquisa petrolífera. Mas o ambiente já estava carregado. O projeto de lei do licenciamento ambiental e a controversa BR-319 pairavam como fantasmas no debate.
Confrontos diretos
A primeira saraivada partiu do senador Omar Aziz (PSD-AM). Surpreendentemente, um parlamentar da base governista. Ele culpou Marina pelo impasse no PL do licenciamento ambiental. “Se essa coisa [o PL] não andar, a senhora também terá responsabilidade do que nós estamos aprovando aqui”, disparou Aziz, elevando o tom. Chegou a gritar que a ministra “atrapalha o desenvolvimento do nosso País”, atribuindo a ela “cinco mil obras inacabadas” – um dado questionável, já que o Tribunal de Contas da União estima em onze mil obras paralisadas, muitas delas iniciadas desde os anos 1980, quando a ministra ainda era estudante universitária.
A situação degringolou com o presidente da comissão, Marcos Rogério (PL-RO). Ele passou a cortar o microfone da ministra, cerceando seu direito de resposta. Um ato diga-se de passagem, que fere o regimento da Casa. “Essa é a educação da ministra Marina Silva”, ironizou Rogério. A resposta de Marina foi imediata e cortante: “Eu tenho educação. Mas o que o senhor gostaria é que eu fosse uma mulher submissa e eu não sou”. A ordem para que ela “se ponha no seu lugar” apenas cimentou a percepção de um ataque misógino. A senadora Eliziane Gama (PSD-MA) não se calou: “Que absurdo. Ponha-se o senhor no seu lugar”
O golpe mais duro, contudo, veio do senador Plínio Valério (PSDB-AM). “Olhando para a senhora, estou falando com a ministra, e não com uma mulher. A mulher merece respeito, a ministra, não”, declarou, numa fala que beirou o inacreditável. Marina, mantendo a postura, retrucou: “Eu sou as duas coisas”. Vale lembrar que Valério já havia protagonizado um episódio anterior de agressão verbal, sugerindo em março que tolerar Marina por horas era um teste para não “enforcá-la”, uma declaração de gravidade ímpar.
Reações e o Planalto
A solidariedade do Palácio do Planalto não tardou. O presidente Lula ligou para Marina logo após o incidente. Elogiou sua decisão de se retirar. “Eu fiquei melhor depois que você decidiu se retirar da audiência e não ficar aguentando aquele tipo de agressão. Você fez o certo”, teria dito o presidente, segundo a própria ministra. Lula confessou um “mal-estar” ao ver as cenas.
As ministras do governo foram linha de frente na defesa de Marina Silva. Márcia Lopes, das Mulheres, classificou o episódio como “completo absurdo”. Denunciou que Marina “foi desrespeitada e agredida como mulher e como ministra”. A primeira-dama, Janja, usou as redes: “Impossível não ficar indignada”. Afirmou ainda que “uma mulher reconhecida mundialmente (…) jamais se curvará a um bando de misóginos”. Anielle Franco, da Igualdade Racial, conectou o ataque a questões mais amplas: “Como mulher negra (…) sinto profundamente cada gesto de desrespeito (…) A violência política de gênero e raça tenta nos calar todos os dias”.
Curiosamente, alguns ministros homens hesitaram. Consultaram a Secretaria de Comunicação da Presidência antes de se manifestar. No fim 18 ministros homens prestaram apoio, enquanto 19 optaram pelo silêncio, um sinal das complexas engrenagens palacianas e, talvez, de um desconforto latente.
Isolamento e xadrez político
Este episódio não surgiu do vácuo. Marina vinha de derrotas políticas recentes. O projeto de licenciamento ambiental, por exemplo, avançou no Senado com ampla maioria, a despeito de sua oposição. Até ministros de áreas como Agricultura e Transportes apoiaram o texto. A disputa pela exploração de petróleo na Margem Equatorial também já havia sido um revés para a ministra.
A base governista, ficou claro, está longe de ser um bloco monolítico, especialmente em temas ambientais. O senador Omar Aziz, da base, atacando a ministra é prova disso. Analistas já apontam que as eleições de 2026 lançam suas sombras sobre as decisões e alianças em Brasília, tornando cada movimento uma peça nesse intrincado xadrez.
Violência que tem gênero e cor
A Bancada Feminina do Senado foi taxativa. O ocorrido é “mais uma expressão da violência de gênero que tantas mulheres enfrentam nos espaços de poder”. A própria Marina Silva, com seus 16 anos de experiência como senadora, notou a deterioração do ambiente parlamentar. Lembrou de tempos em que o debate, mesmo duro, mantinha “outra dimensão”, citando figuras como Arthur da Távola e Pedro Simon.
A ministra também verbalizou a dimensão multifacetada do ataque. “O que não pode é alguém achar que porque você é mulher, é preta, vem de uma trajetória de vida humilde, que você vai dizer quem eu sou e ainda dizer que eu devo ficar no meu lugar”, desabafou. Uma fala potente que ressoa com a análise de Anielle Franco sobre a violência que intercepta gênero e raça, buscando deslegitimar com base em múltiplas camadas de preconceito.
Resistir e articular
Mesmo abalada, Marina não se deixou paralisar. Deixou o Senado e rumou para a Câmara dos Deputados. Reuniu-se com o presidente da Casa, Hugo Motta. Buscava ali, quem sabe, um novo fôlego para tentar barrar ou ao menos rediscutir o projeto de licenciamento ambiental.
Durante todo o calvário, ela não se desviou de seu norte. “Ao defender o meio ambiente eu estou defendendo os interesses estratégicos do Brasil”, afirmou, mantendo a defesa técnica e política, mesmo sob artilharia pesada. Uma demonstração de resiliência.
Contraponto no Senado: o tratamento a Virgínia Fonseca
Chama a atenção o contraste no tratamento dispensado pelo Senado a Marina Silva e à influenciadora digital Virgínia Fonseca, convocada recentemente à CPI das Bets. Enquanto a ministra enfrentou um ambiente de hostilidade explícita e ataques pessoais, Virgínia, embora questionada sobre seus contratos com casas de apostas, depôs em um clima formal. Amparada por um habeas corpus do STF, que impedia sua prisão, foi tratada com cortesia pelos senadores, que destacaram que o objetivo não era “criminalizá-la” ou “apontar o dedo”. As críticas à influenciadora focaram na responsabilidade social da publicidade de apostas, sem descambar para o pessoal ou questionar seu gênero. Uma diferença que levanta questões sobre como o poder legislativo lida com mulheres em diferentes esferas de influência e escrutínio, e se o tratamento dispensado varia conforme o poder de enfrentamento ou os interesses em jogo.
O episódio de 27 de maio de 2025, com Marina Silva no epicentro, vai muito além de um dia de fúria no Senado. Ele lança luz sobre as batalhas travadas por mulheres em espaços de poder, especialmente quando ousam tocar em temas sensíveis como a agenda ambiental, que colide com poderosos interesses econômicos e políticos. A resposta do governo, com apoio presidencial e a pronta mobilização feminina, sugere uma crescente conscientização sobre a violência política de gênero.
No entanto, as fissuras na base aliada e a hesitação de alguns setores acendem um alerta. O desafio, portanto, permanece: como garantir que o debate democrático, essencial para o país, não seja sufocado por táticas de intimidação e que o respeito institucional prevaleça, independentemente de gênero, raça ou origem? A saúde da nossa democracia depende dessa resposta.
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