Pesquisar
Close this search box.

Bancos na berlinda: crédito agrícola e o desafio de proteger a água

Análise sobre a crescente pressão para que instituições financeiras monitorem o uso da água em projetos agrícolas financiados, diante da crise hídrica e do dever de proteção ambiental.

Instituições financeiras devem ir além do lucro e monitorar ativamente o uso de recursos hídricos em lavouras financiadas.

A água, recurso cada vez mais precioso, coloca as instituições financeiras em uma encruzilhada: continuar a financiar o agronegócio com foco estrito no retorno financeiro ou assumir um papel ativo na proteção das fontes hídricas.

O debate ganha força, como apontam os pesquisadores Placídio Ferreira da Silva e Daniel Barile da Silveira em seu estudo sobre a obrigação de monitoramento do uso da água por instituições financeiras, intitulado “A obrigação das instituições financeiras de monitoramento da utilização da água outorgada pelo estado para a lavoura: uma análise a partir do dever fundamental de proteção do meio ambiente” e publicado na Revista Observatório de la Economía Latinoamericana.

A agricultura irrigada já abocanha cerca de 70% da água doce utilizada globalmente, e o Brasil, por exemplo, enfrenta desafios como a severa seca no Cerrado, a mais intensa dos últimos 700 anos, segundo dados recentes. Nesse cenário, o crédito agrícola e o desafio de proteger a água tornam-se indissociáveis, questionando até que ponto os bancos devem, ou podem, fiscalizar o destino da água outorgada pelo Estado nas lavouras que ajudam a cultivar.

Afinal, o uso responsável dos recursos naturais não é apenas uma tendência passageira, mas uma discussão global urgente sobre sustentabilidade. Com a crescente demanda por práticas mais verdes, o papel dos bancos na gestão ambiental está, inevitavelmente, sob escrutínio.

Dever constitucional em foco

No Brasil, a Constituição de 1988 é clara, como ressaltam Silva e Silveira em sua análise. Ela eleva o meio ambiente a um status fundamental, garantindo o direito à sua proteção e impondo o dever de defendê-lo e preservá-lo para as futuras gerações a todos: poder público e sociedade. Essa responsabilidade compartilhada não se limita aos portões das estatais ou às cercas das unidades de conservação; ela permeia as relações privadas e as decisões de negócios.

A legislação vai além, definindo a proteção ambiental como princípio da ordem econômica e condicionando a função social da propriedade ao uso adequado dos recursos naturais. Portanto, o estudo de Silva e Silveira levanta a interrogação: estariam os bancos, como motores da economia, implicitamente obrigados a zelar por esse bem comum ao concederem crédito? A resposta parece inclinar-se para um sonoro “sim”, especialmente quando se trata da água, um bem público, mesmo que a nascente esteja em terra particular.

Pressão internacional aumenta

O cerco se fecha também no cenário global. Os Princípios do Equador, por exemplo, já fornecem um roteiro para que as instituições financeiras avaliem e gerenciem riscos socioambientais em grandes projetos. Um relatório de atividades de 2023 detalhou um caso na Indonésia onde, apesar de o país não ser classificado como de estresse hídrico, o projeto foi considerado de alto risco devido ao baixo acesso local à água potável. A instituição financeira exigiu, então, avaliação de serviços ecossistêmicos e um programa robusto de conservação hídrica.

Na mesma linha, os Princípios para Bancos Responsáveis (PRB) da ONU conclamam os bancos a considerar o impacto de todo o seu portfólio, estabelecendo metas para aumentar os efeitos positivos e diminuir os negativos de suas operações. É uma chamada direta para que o monitoramento ativo do uso da água em projetos agrícolas financiados saia do papel.

Tecnologia como aliada

Felizmente, a tecnologia surge como uma poderosa aliada nessa empreitada. O sensoriamento remoto, utilizando satélites e drones, já permite diagnósticos precisos da saúde das lavouras em tempo real, identificando desde estresse hídrico até a necessidade de irrigação mais precisa. Plataformas como a WaPOR, desenvolvida pela FAO, utilizam dados de satélite para ajudar países a monitorar a produtividade da água e identificar gargalos na eficiência hídrica, calculando até o valor econômico de cada gota usada.

Empresas no Brasil, como a Serasa Experian, já oferecem soluções que integram imagens de satélite e Big Data para acompanhar propriedades rurais, otimizando o uso de insumos, incluindo a preciosa água. Essas ferramentas não apenas beneficiam o agricultor, mas fornecem aos bancos informações estratégicas para mitigar riscos.

Para entender melhor: O que é a outorga de uso da água?

A outorga é um instrumento da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/97). Trata-se de uma autorização emitida pelo poder público que permite ao usuário (indivíduo ou empresa) utilizar uma determinada quantidade de água de um rio, lago ou reservatório subterrâneo para uma finalidade específica, como irrigação agrícola, abastecimento industrial ou consumo humano. O objetivo é controlar o uso da água, garantindo sua disponibilidade para múltiplos usuários e para o meio ambiente, especialmente em um país onde não existem águas particulares – todas são bens dos Estados ou da União.

Movimentos no cenário brasileiro

O Brasil não está parado, pelo menos no papel. O Plano Safra 2024/25, por exemplo, iniciado em julho de 2024, trouxe reajustes nos limites de crédito para o Programa de Financiamento à Agricultura Irrigada (ProIrriga). A demanda é visível: operações aprovadas pelo BNDES entre julho e setembro de 2024 cresceram quase 70% em relação ao ano anterior. O Banco do Brasil também reportou um salto nos desembolsos para irrigação.

Iniciativas regionais, como o programa Agroamigo Água do Banco do Nordeste, focam em melhorar a infraestrutura hídrica em pequenas propriedades, financiando desde cacimbas a sistemas de captação. E a regulamentação ambiental, como a Resolução 3545 do Banco Central, já impõe exigências para financiamentos no Bioma Amazônia, prevendo suspensão de crédito em caso de embargo por desmatamento ilegal.

O desafio da “materialidade dupla”

A questão, contudo, é mais complexa do que simplesmente assinar um cheque ou cumprir uma norma. Especialistas apontam para a necessidade de as instituições financeiras considerarem a “materialidade dupla”: não apenas os riscos que a insegurança hídrica traz para seus negócios, mas também o impacto que suas carteiras de crédito têm sobre a segurança hídrica. Alguns bancos, como o BNP Paribas, já implementaram políticas que incluem critérios hídricos como pré-requisitos para negócios, podendo até cessar relações comerciais se o diálogo por melhorias não surtir efeito. O Bendigo and Adelaide Bank, na Austrália, exige que clientes do agronegócio não vendam seus direitos de água sem consentimento.

Apesar dos avanços e da crescente conscientização, a fiscalização do uso dos fundos após a concessão dos empréstimos continua sendo um calcanhar de Aquiles, como alertam pesquisadores. Muitas vezes, os bancos carecem de meios ou mandatos claros para assegurar que a água seja empregada de forma responsável.

Ainda que, conforme identificado no estudo de Silva e Silveira para o Observatório de la Economía Latinoamericana, não exista uma lei explícita que obrigue as instituições financeiras a esse tipo de monitoramento detalhado do uso da água, a pressão por responsabilidade socioambiental, os critérios ESG (ambiental, social e de governança) e o próprio dever fundamental de proteção ao meio ambiente indicam um caminho sem volta. A pergunta que fica não é mais se os bancos devem monitorar ativamente o crédito agrícola e o uso da água, mas como podem fazer isso de forma eficaz, garantindo que o financiamento de hoje não seque as chances de um futuro sustentável.

Leia também: Mauro Mendes: mulheres expressam maior insatisfação e distanciamento, aponta pesquisa

Leia também: Senado aprova controverso PL 2.159 sob forte oposição de especialistas

Quer se informar sobre meio ambiente em MT? Ouça o Pod Lupa na mata:

PROPAGANDA

MAIS NOTÍCIAS

CATEGORIAS

.

SIGA-NOS

PROPAGANDA

PROPAGANDA

PROPAGANDA

PROPAGANDA