“É R$ 2 o ingresso. O que interessa é a homenagem a esse homem que sempre quis entrar na Academia Brasileira de Letras e nunca conseguiu. E eu disse: ‘vou colocá-lo no Theatro Municipal’. Eu recebi vários ‘nãos’ até finalmente conseguir. E com grande alegria, 5 mil pessoas estarão lá para homenagear esse extraordinário escritor”.
O homenageado é Lima Barreto. O tributo ocorre em monólogo do ator Hilton Cobra nesta terça-feira (17), em duas sessões: uma às 17h, exclusivamente para estudantes de escolas públicas, e outra às 19h, aberta ao público e com ingresso a preço popular.
O espetáculo Traga-me a Cabeça de Lima Barreto! está em cartaz há seis anos e contabiliza mais 250 apresentações em 19 estados do país. As apresentações no Theatro Municipal marcam o centenário da morte do escritor, em 1º de novembro de 1922, aos 41 anos. Na peça ficcional, médicos eugenistas do início do século 20 determinam a exumação do seu corpo para realizar uma autópsia na cabeça e entender como um homem de raça considerada inferior poderia ter construído uma obra tão vasta.
Neto de escravos, Lima Barreto perdeu a mãe ainda pequeno e pôde estudar em bons colégios graças ao apadrinhamento de Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto, de quem seu pai se aproximou ao se envolver na defesa da monarquia. Na Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), denunciou o racismo em algumas ocasiões e não chegou a concluir o curso de engenharia.
Lima Barreto assinou contos, romances, sátiras e crônicas e tornou-se crítico feroz da Primeira República Brasileira, contestando o nacionalismo ufanista e a manutenção dos privilégios de famílias aristocráticas e dos militares. Sua produção literária fomenta a discussão de temas ligados às desigualdades sociais e à hipocrisia nas relações humanas na sociedade do início do século 20. Ele também deu visibilidade para a vida no subúrbio carioca, aproximou a linguagem coloquial do romance brasileiro e alimentou desavenças com outros escritores. Acusava a Academia Brasileira de Letras (ABL) de elitismo, o que não o impediu de apresentar sua candidatura duas vezes sem sucesso.
Hilton Cobra considera que Lima Barreto abordava temas sensíveis sem fazer concessões. Ele cita a denúncia das questões raciais em Clara dos Anjos e a crítica às desigualdades no célebre romance O Triste Fim de Policarpo Quaresma. “Toda a sua obra é pautada pela questão política, pelas questões do Brasil. Policarpo Quaresma era aquele apaixonado, que todo mundo chamava de louco. Era um cara apaixonado pela língua tupi e tudo que ele queria era compreender a cultura brasileira”.
Para ele, Lima Barreto precisa ser reverenciado. “Se não é o melhor cronista da vida brasileira, é dos melhores. Era um cara que não abria concessões para aquela época. Por isso, foi tão perseguido e injustiçado. Não foi aceito como o grande escritor que era. Ele tentou entrar na Academia Brasileira de Letras e não conseguiu. Também tinha grande dificuldade de publicar seus livros”, acrescenta.
Baiano de Feira de Santana, Hilton Cobra tem uma longeva carreira de ator, que abrange 46 dos seus 67 anos. Assina também peças como diretor e é fundador da Cia dos Comuns, grupo sediado no Rio de Janeiro com o objetivo de ampliar a presença de artistas negros no teatro brasileiro contemporâneo. Nas telas, atuou em diferentes filmes e novelas, estando atualmente no ar em Fuzuê, da Rede Globo. Desenvolve ainda atividades como gestor cultural, tendo presidido de 2013 a 2015 a Fundação Palmares, órgão vinculado ao Ministério da Cultura voltado para a preservação da cultura afro-brasileira.
Militante do movimento negro, Hilton Cobra carrega para a sua trajetória artística a discussão e o enfrentamento ao racismo, o que o levou a se conectar com a obra de Lima Barreto. Ele começou a se aprofundar sobre o trabalho do escritor em 2008, quando protagonizou o romance O Triste Fim de Policarpo Quaresma, em uma adaptação do diretor e dramaturgo Luiz Marfuz. A peça, encenada pelo Núcleo do Teatro Castro Alves, ganhou o prêmio Braskem de melhor espetáculo no ano seguinte à sua estreia.
“Eu conhecia Lima Barreto já na infância. Mas nada muito profundo. Em 2008, o Luiz Marfuz, que me apresentou o ofício do ator em 1978, me convidou para protagonizar O Triste Fim de Policarpo Quaresma. E, naquela época, eu mergulhei fundo nessa obra, mas não na vida de Lima Barreto. Quando eu concluí 40 anos de carreira em 2016, decidimos fazer o Traga-me a Cabeça de Lima Barreto!. Foi o primeiro monólogo da minha vida. E a partir daí eu, de fato, mergulhei na sua vida e obra”, conta Hilton Cobra.
Traga-me a Cabeça de Lima Barreto! também foi escrita por Luiz Marfuz. As obras Diário íntimo e Cemitério dos vivos, consideradas autobiográficas, servem de fio condutor para abordar temas como loucura, racismo e eugenia. Na época, o texto foi pensado para comemorar as quatro décadas de carreira de Hilton Cobra. A direção é de Fernanda Júlia.
A narrativa ganha força com trechos dos filmes Homo Sapiens 1900 e Arquitetura da Destruição – ambos cedidos gentilmente pelo cineasta sueco Peter Cohen – que mostram fortes imagens da eugenia racial e da arte censurada pelo regime nazista na Alemanha. Em apoio à encenação, há também locuções que foram gravadas por diferentes atores, como Lázaro Ramos e Caco Monteiro, amigos de Hilton Cobra.
Eugenia
A história levada aos palcos se passa durante um congresso de eugenistas no Brasil, no início do século 20. O termo eugenia foi usado pela primeira vez em 1883 pelo antropólogo britânico Francis Galton para designar um conjunto de ideias com vistas à melhoria genética dos seres humanos. Ele defendia o desenvolvimento de estudos que indicassem caminhos para aprimorar as qualidades das futuras gerações, seja física ou mentalmente.
A proposta de Galton deu origem a teorias variadas que postulavam a divisão da espécie humana entre raças superiores e inferiores. A eugenia constituiu-se assim em discurso segregacionista violento em diversos países, tendo sido utilizada, por exemplo, para justificar atrocidades empreendidas pelo regime nazista. No Brasil, teses eugenistas foram defendidas por nomes como o do médico Renato Kehl e o do escritor Monteiro Lobato, que paradoxalmente foi amigo de Lima Barreto e inclusive, como editor, publicou algumas de suas obras.
“Na peça, os presentes no Congresso de Eugenistas no Brasil discutem como é possível um homem de raça inferior construir uma obra tão genial e tão grandiosa. Eles pedem a exumação do cadáver de Lima Barreto. Lima Barreto então volta ao mundo, chega ao Congresso e entrega sua cabeça para ser dissecada”, conta Hilton Cobra.
A partir dessa história, a peça mostra as várias facetas da personalidade de Lima Barreto, refletindo sobre loucura e racismo, sobre sua obra não reconhecida e os enfrentamentos políticos e literários da época. Hilton Cobra acredita que há necessidade de falar mais sobre o escritor. “Eu acho que o mundo da arte ainda está descobrindo Lima Barreto. Eu sei que tem um filme, eu sei que tem uma novela que é inspirada em um de seus contos. Eu sei que tem várias peças, mas não são tantas”. Ele disse que também manteve contato com a produção acadêmica.
“Me surpreendi com a quantidade de pesquisa sobre Lima Barreto. Mas há muitas teses que acabam engavetadas. Acho que a academia precisa melhorar a divulgação. Tem muita gente pesquisando Lima Barreto hoje. Eu viajei pelo Brasil todo, rodei pelo interior, fiz espetáculos em todo tipo de palco que você possa imaginar, em todas as regiões do país. Eu me surpreendia depois das apresentações, quando vinham pessoas do público dizer que estudavam Lima Barreto”.
Considerando que a obra do escritor oferece subsídios para discutir temas contemporâneos, Hilton Cobra também busca abordar na peça questões da atualidade. “Sabe os shows de Caetano Veloso, que ele sempre faz um intervalo e aqueles discursos? Foi aí que eu achei uma chave para falar dessas questões. Em outras apresentações, falamos da pandemia de covid-19, dos problemas do governo Jair Bolsonaro. Sempre há possibilidade de eu dissertar sobre a vida cotidiana”, diz.
Teatro Negro
Lima Barreto teve dificuldades para levar adiante seu trabalho literário e algumas de suas obras foram publicadas apenas postumamente. Para Hilton Cobra, artistas negros ainda enfrentam barreiras no mercado cultural. Ele avalia, no entanto, que houve conquistas do movimento negro nas últimas décadas. “Vamos falar sobre o teatro? Nós conseguimos colocar negros nas comissões julgadoras de projetos. Porque sempre fomos julgados por brancos. E temos hoje negros julgando projetos de artes. Também a partir das nossas lutas, conseguimos ter editais diferenciados. E o teatro negro conseguiu colocar a vida da gente brasileira no seu texto, na sua dramaturgia”.
Ele vê também o cinema brasileiro e as telenovelas abrindo mais espaços para artistas negros, mas pondera: “Eu só acho que a vida da gente negra tem que estar mais presente, como no teatro já está. Não basta trazer atores e atrizes negros extraordinários e dizer: ‘nós estamos colocando negros’. Isso já é um bocado de coisa, é uma conquista da nossa luta. Mas precisamos ir além. Precisamos de novelas e filmes que falem sobre a vida da gente negra”.
Também no campo político e social, ele vê avanços importantes, a exemplo das cotas raciais. Por outro lado, considera que ainda há desafios em todas as áreas. “Não podemos esquecer que em agosto assassinaram com tiros no rosto Mãe Bernadete, uma mulher de 72 anos. Um crime que poderia ter sido evitado se o Quilombo Pitanga dos Palmares já tivesse sido titulado. É um exemplo de que ainda temos muitos desafios. Eu queria muito ler o que Lima Barreto escreveria sobre o mundo de hoje. A Justiça brasileira foi criada para servir a quem? Essa é uma questão muito importante”.
Edição: Graça Adjuto