O Edifício A Noite, no centro do Rio de Janeiro, teve o projeto de reforma oficialmente lançado na noite desta sexta-feira (13). A palavra “reforma”, no caso, representa bem o principal desafio do projeto. No dicionário, a palavra tem dois significados totalmente opostos: pode ser tanto o retorno a uma “forma” anterior, como uma transformação que crie uma “forma” nova e melhor. No caso do edifício, trata-se, portanto, de modernizar a estrutura e preservar uma história quase centenária ao mesmo tempo.
Vendido em julho de 2023 pela prefeitura do Rio, o prédio de 22 andares abrigou a Rádio Nacional e o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Por ser uma estrutura tombada pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 2013, determinadas estruturadas precisam ser mantidas, como é o caso da própria fachada.
O comprador, um investidor privado, o transformará em um residencial com 447 unidades. Estão previstas área de restaurantes no térreo e, no terraço, um espaço aberto à visitação com mirante. Também foi anunciado que haverá um memorial da Rádio Nacional e uma espécie de calçada da fama para homenagear artistas que passaram pela rádio.
Para os historiadores ouvidos pela reportagem da Agência Brasil, é preciso que a preservação dessa memória seja levada a sério, pela importância que ela tem para a história arquitetônica e cultural do país.
“O Edifício A Noite foi construído na década de 1920, quando o Rio de Janeiro está começando a passar por um processo de verticalização. É uma mudança radical na forma do morar do carioca. As pessoas estão começando a viver em apartamentos”, diz o historiador Douglas Liborio. “Preservar essa memória da transformação das formas de morar impacta numa lógica pedagógica fundamental para construção da cidadania e do reconhecimento do direito à cidade. Um patrimônio só tem sentido se pensado a partir da ocupação dos indivíduos”.
Para artistas que participaram da era de ouro do rádio e construíram parte da história da comunicação no país, é importante que este legado não seja perdido.
“O edifício é testemunha da força vital do rádio no mundo. Eu cantei aqui no programa César de Alencar. E foi incrível, maravilhoso. Passei a desfrutar dos corredores da Rádio Nacional, com Roberto Carlos, Caubi Peixoto, Angela Maria, Emilinha, todo mundo que se confraterniza. Estou muito feliz com a promessa de que essa memória vai ser preservada, de alguma forma”, disse Eliana Pittman, cantora e atriz brasileira.
Marco arquitetônico e social
A história do edifício está diretamente associada ao jornal A Noite, criado em 18 de julho de 1911, que se tornou um dos mais populares da cidade. Uma mudança de comando na década de 1920 levou a um projeto de expansão do periódico, que incluía a construção de uma sede própria, no estilo arranha-céu. O lote para a construção pertencia ao antigo Liceu Literário Português, na Praça Mauá. O projeto foi desenvolvido pelo arquiteto Joseph Gire. O francês já era responsável por prédios como o Palácio Laranjeiras, Hotel Glória e Copacabana Palace.
“A inserção do A Noite ali na entrada da antiga Avenida Central, atual Avenida Rio Branco, está muito associada à lógica de construção da modernidade no país. Ainda que tenha toda a influência do concreto armado, já se aproxima dos princípios construtivos da escola de Chicago nos Estados Unidos”, disse Douglas Liborio. “Ele se associa à estética carioca, mas se afasta de uma arquitetura chamada historicista, inspirada em modelos franceses, que dominava a paisagem. Era muito pautado pelo art déco, com uma feição regular, ornamentação discreta, com ênfase na volumetria. Na época, foi chamado de prodígio arquitetônico”.
A Noite
O Edifício Joseph Gire, que ficou conhecido popularmente como A Noite, foi inaugurado em 1927. Em de maio de 1933, o grupo A Noite resolveu expandir os negócios e instituiu Sociedade Civil Brasileira Rádio Nacional. Ela estreou oficialmente em setembro de 1936, no último andar do prédio. Em 1940, o governo Getúlio Vargas encampou todos os bens da Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. O que incluía ter o controle do grupo A Noite e da Rádio Nacional.
“As ondas da Nacional tomaram o Brasil. Principalmente a partir do Estado Novo de Vargas. Porque ela se transformou quando foi encampada por Vargas em um instrumento de divulgação das grandes questões e projetos nacionais. Além disso, foi inovadora em todos os aspectos no rádio brasileiro. Desde os programas de auditório, que enchiam o 21 andar. Quase quinhentos lugares cheios. Auditório alvoroçado por ver todos os que participavam dos programas. E inovava nas radionovelas, que fazia as pessoas ficarem com os ouvidos colados no rádio, vivendo todas as emoções possíveis”, explica o historiador Antonio Edmilson.
Entre as primeiras e mais importantes mudanças na Rádio Nacional estão a estreia, em 1941, do Repórter Esso e o Radioteatro Colgate, com a primeira radionovela “Em busca da Felicidade”. O espaço físico foi remodelado e um auditório para 486 pessoas foi construído no 21º andar. A Rádio passou a ocupar os últimos quatro pavimentos.
Iniciativas de memória
E já que uma das iniciativas anunciadas para preservar essa memória da rádio envolve uma “calçada da fama”, que nomes teriam de estar obrigatoriamente ali?
“Aracy de Almeida não pode ficar de fora. Nem a Marília Batista, nem o Radamés Gnattali, nem o corpo de dramaturgia da Rádio Nacional. E aí, são muitos, artistas como Carlos Galhardo, Heron Domingues, Lamartine Babo, Chico Anysio. São muitas pessoas que são importantes e merecem ser lembrados”, disse o historiador Antonio Edmilson. “Eles vão precisar de muita calçada e não sei se isso vai dar conta de tudo aquilo que representa a importância do prédio e da Rádio Nacional”.
Outros nomes famosos poderiam ainda ser citados, como Emilinha Borba, Marlene, Dalva de Oliveira, Luiz Gonzaga, Cauby Peixoto, Elizeth Cardoso, César de Alencar e Paulo Gracindo. O historiador, porém, entende que seria importante ir além da calçada e da reprodução do estúdio da rádio.
“Eu acho que de alguma maneira era necessário fazer um livro de ouro do prédio, que pudesse ser manuseado pelas pessoas, um documentário sobre todo esse processo da obra, para deixar uma memória que fosse ancorada nas tecnologias visuais que você tem hoje para além daqueles padrões tradicionais”, defende Antonio Edmilson.
Como parte dessa história também envolve características arquitetônicas, o historiador Douglas Liborio lista o que seria fundamental preservar das características estruturais do edifício.
“Vale muito a pena recuperar o que era o hall de entrada, porque era um dos grandes marcos do art déco, que é inspiração do interior dos transatlânticos. É muito claro nos pilares dos halls e no ambiente muito espaçoso dos halls de entrada. Um marco do art decó também que é importante ver é a abertura de janelas, muito característico do estilo. Abertura regular e padronizada”, disse o historiador. “Manutenção do terraço com a vista para a baia de guanabara. Para se recuperar como espaço de fruição e vista pública. Ele marca a paisagem carioca. E isso é particular de construção do Rio de Janeiro. Estamos falando da entrada da cidade, do novo porto no início da República.”
Edição: Maria Claudia