A Terra Indígena (TI) Cachoeira Seca, no Pará, é habitada pelos indígenas arara, que têm uma população de apenas cerca de 100 pessoas. Lá o total de não indígenas que fixaram residência ilegalmente passa de 3 mil, e o acesso à aldeia dos arara é feito por meio da vila de quem ocupa o local de modo irregular.
O caso é apontado em um relatório lançado nesta terça-feira (19) na capital paulista pela entidade Conectas Direitos Humanos, pelo Instituto Maíra e entidades de representação indígena. O documento foi elaborado coletivamente com a Associação Etnoambiental Kanindé, Jupaú – Associação do Povo Indígena Uru-eu-wau-wau e Kowit – Associação Indígena do Povo Arara da Cachoeira Seca.
Outra situação mostrada no relatório é a de povos que vivem nas Terras Indígenas (TI) Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, e, ainda, a da TI Sete de Setembro, em Rondônia e Mato Grosso. São povos com sua existência sob risco, sendo que alguns deles aceitaram entrar em contato com pessoas de fora de sua comunidade apenas recentemente e outros optaram por permanecer em isolamento voluntário.
A diretora de Fortalecimento do Movimento de Direitos Humanos da Conectas, Julia Mello Neiva, explica que os autores do relatório decidiram se concentrar em detalhar o cenário desses territórios porque as lideranças que neles atuam têm em comum a forma de enfrentar as dificuldades, que se assemelham. Além disso, enfatiza ela, os líderes indígenas demonstram disposição ao diálogo, a fim de encontrar soluções, inclusive no que diz respeito ao processo de desintrusão, ou seja, de retirada dos invasores.
A diretora da Conectas, que conversou com as lideranças diretamente, menciona que elas têm receio de que os invasores retornem à TI, após sua expulsão, e que, para ela, o governo federal tem sinalizado estar do lado dos indígenas. “É proteger os povos indígenas, mas também a humanidade”, afirma.
Como em diversos outros territórios no Brasil e tendo como exemplo os outros citados no relatório, na TI Cachoeira Seca desrespeita-se um dos princípios mais importantes para os povos originários, o de autodeterminação, segundo a pesquisa. A autodeterminação significa que os povos indígenas têm direito a conduzir, como bem entenderem, a sua condição política e seu desenvolvimento, nos âmbitos econômico, social e cultural. Isto é, deveriam gozar de autonomia e ter condições para isso.
Segundo o relatório “Vidas em territórios sob pressão: povos Uru-Eu-Wau-Wau, Paiter Suruí e Arara”, na TI em questão, que fica entre os rios Iriri e Xingu, o modo de viver e, por conseguinte, o de não viver têm sido ditado pelos invasores, que são madeireiros, grileiros, garimpeiros e outros tipos, como os fazendeiros que criam gado. Conforme ressalta o relatório da rede de organizações, com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre 2008 e 2020, os arara perderam 367,9 km² de floresta.
“Em termos gerais, o impacto desse desmatamento é a diminuição da caça, mais poluição do rio e diminuição dos peixes. As grandes árvores castanheiras e a maioria dos ipês foram derrubadas. Como consequência, os indígenas não se sentem mais à vontade para fazer caçadas distantes, para se afastarem da aldeia – dentro do território, mas longe da aldeia. Isso porque, ao fazer acampamento no mato, é possível escutar motosserras se aproximando de madrugada. Dessa forma, o uso do próprio território começa a ser restringido por medo de se deparar com um madeireiro ou algum invasor na terra deles”, descreve o relatório.
Ameaças
O relatório mostra que os arara também sofrem, como muitos de seus parentes indígenas, ameaças, constantemente. Um caso que ilustra a violência a que ficam expostos é o de Karaya Arara, que, em maio de 2000, foi encontrado morto no rio Iriri, em Altamira, dias após terem reportado seu desaparecimento.
A TI Uru-Eu-Wau-Wau, por sua vez, é um dos territórios indígenas que constam da lista de prioridades do governo federal, em termos de desintrusão. Os indígenas do território assistiram a um agravamento das pressões sobre a região, no intervalo de 2018 a 2021.
De acordo com o relatório lançado nesta terça-feira, a região próxima à aldeia Linha 623, onde os indígenas coletam castanhas, é foco de ataques de grileiros e madeireiros, que provocam desmatamento, roubam castanhas e ameaçam a vida dos indígenas que já estabeleceram contato e também dos indígenas isolados.
Ivaneide Bandeira Cardozo, da Kanindé, relembrou o episódio que vivenciou em 14 de maio, quando cerca de 50 homens a acuaram, enquanto estava na companhia de indígenas paiter suruí, no momento em que faziam o preparo de um desenho no chão, como protesto contra o desmatamento na região. Ela conta que os invasores dão tiros na floresta, mostram que não se importam em desautorizar agentes da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e, em diversas ocasiões, já afirmaram que indígenas são “folgados”.
Para Ivaneide, uma das preocupações é a descaracterização dos casos como violações de direitos dos indígenas e conflitos por terra. O que fazem, comenta, é atribuir as agressões a outros fatores, “inventando desculpas”. Segundo ela, até hoje, não avançaram na Justiça os processos que poderiam dar desfecho aos casos de violência cometida contra as lideranças.
“Todos os protetores [da floresta] são ameaçados de morte, têm que viver sob proteção. Há um bocado de tempo, não posso ir à TI Uru-Eu-Wau-Wau, por alguns lugares, porque sei que, se eu for, vão me matar. E não sou só eu, é a equipe. Eles têm os nomes todos, as pessoas marcadas. E esse pessoal não mata por si, manda matar”, declara.
A Agência Brasil entrou em contato com o Ministério dos Povos Indígenas e com a Funai para obter um posicionamento sobre as colocações feitas no relatório, mas não obteve retorno até a publicação da matéria.
Edição: Sabrina Craide