Nesta semana, a professora Nelice Pompeu, servidora da rede pública de ensino do estado de São Paulo há mais de 30 anos e integrante do Movimento Escolas em Luta, acionou o Ministério Público Federal (MPF) para que tome providências contra o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) por ter proferido um discurso em que compara “professores doutrinadores” a traficantes de drogas. O discurso do congressista foi feito no domingo (9), durante o 4º Encontro Nacional do Proarmas pela Liberdade, que aconteceu em Brasília.
“Não tem diferença de um professor doutrinador para um traficante de drogas que tenta sequestrar os nossos filhos para o mundo do crime. Talvez o professor doutrinador seja pior”, disse o deputado no discurso.
No dia seguinte, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, determinou à Polícia Federal (PF) que analisasse as declarações do parlamentar no evento. “Determinei à Polícia Federal que faça análise dos discursos proferidos neste domingo, em ato armamentista, realizado em Brasília. Objetivo é identificar indícios de eventuais crimes, notadamente incitações ou apologias a atos criminosos”, informou Dino em suas mídias sociais.
Em entrevista à Agência Brasil, a professora disse que a declaração de Eduardo Bolsonaro “foi irresponsável” e precisa sofrer algum tipo de punição. “Essa não foi só uma declaração infeliz. Foi uma declaração criminosa e irresponsável”.
“Não é liberdade de expressão quando fere os princípios de preservação da vida e de direitos e coloca o outro em risco e promove o ódio. Isso é uma fala irresponsável. Por isso comecei a buscar mecanismos para cobrar providências”, acrescentou.
Além do Ministério Público Federal, a professora acionou também a Comissão de Ética da Câmara dos Deputados para que seja tomada alguma providência com relação à fala do congressista.
Violência
Para a professora Nelice Pompeu, o discurso de Eduardo Bolsonaro acaba estimulando ainda mais a violência dentro das escolas. “O que me chamou a atenção é que isso foi dito em um evento pró-armas, estimulando a violência, em um momento em que as escolas viveram muitas tragédias neste ano. As escolas estão presenciando uma escalada de violência absurda. Essa polarização, esse clima de ódio, esse clima de intolerância, acaba explodindo nas escolas”, alertou.
Violência que, segundo a professora, já vem em uma escalada crescente nos últimos anos. “De uns anos para cá, com essa polarização que se criou na sociedade, piorou muito a questão de violência e agressão dentro das escolas e contra os profissionais professores. Tem também a questão da Escola sem Partido, esse movimento que acabou incutindo para a sociedade que o professor é um doutrinador, embora esse conceito não exista”.
“De maneira geral, o que tem acontecido é um aumento dessa violência no ambiente escolar. Um exemplo disso foram os ataques que aconteceram no início deste ano. Acho importante pontuar que isso não acontece de maneira descontextualizada. Isso é reflexo de um processo que acontece desde o início dos anos 2000, com a criação do movimento Escola sem Partido e com o processo de perseguição e de vigilância contra professores, reduzindo sua autonomia em sala de aula e atingindo, inclusive, outras instâncias como a de construção de políticas públicas”, disse Marcele Frossard, assessora de Programa e Políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, à Agência Brasil.
Um levantamento feito pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, por exemplo, apontou que os eventos de violência extremo nas escolas no Brasil começaram na primeira década dos anos 2000. Antes desse período, não havia registro desse tipo de ataques. Desde então, houve 16 ataques no Brasil, sendo que quatro deles ocorreram no segundo semestre de 2022 (o balanço não computou o ano de 2023). Esses ataques fizeram 35 vítimas fatais. Outras 72 pessoas sofreram ferimentos.
Para Marcele Frossard, a fala de Eduardo Bolsonaro, de alguma forma, contribui para o aumento dessa violência que já é uma constante no ambiente escolar.
“A fala do congressista vem no bojo desse tipo de pensamento e de prática, que foi fortalecida durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Isso inclusive é tema do que a Campanha Nacional pelo Direito à Educação apresenta em seu guia de resposta e prevenção de violência às escolas e também no relatório que foi entregue pelo professor Daniel Cara [professor de Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo], ao governo de transição sobre o extremismo de direita no ambiente escolar. Essas falas estão relacionadas com essa percepção errônea da educação pública – e também da classe dos trabalhadores e profissionais da educação – e contribuem para a perseguição e para o aumento da violência a esses profissionais”, disse.
Um outro balanço, feito pelo Instituto Sou da Paz e divulgado em maio deste ano, apontou que 24 ataques a escolas ocorreram entre nos anos de 2002 e 2023 no Brasil. E também concluiu que esses ataques violentos foram ficando mais intensos nos últimos anos.
“Uma das informações muito importantes do relatório é que ele mostra como houve, nos últimos anos, principalmente desde 2019, um aumento muito significativo [de ataques violentos a escolas]. Tem crescido muito rapidamente a ocorrência desse tipo de ataque nas escolas, que é um tipo de violência muito extrema e muito chocante pela sua letalidade e pelo seu potencial de vitimar um número muito grande de pessoas, entre feridos e mortos. É uma situação que tem e ainda está sensibilizando muito a sociedade”, ressalta Beatriz Graeff, pesquisadora do Instituto Sou da Paz.
“Nesse relatório trazemos algumas recomendações e uma das questões que a gente aborda é justamente a de ampliar a capacidade do Poder Públicoem monitorar e diagnosticar esse tipo de risco e de ameaça em torno da escola. E para isso é muito importante que a gente melhore a capacidade de produzir dados sobre as violências que ocorrem dentro das escolas”, acrescentou.
Para Beatriz, uma fala como a que foi proferida por Eduardo Bolsonaro, acirra uma situação que já está bastante complicada nas escolas. “É muito claro que esse discurso de ódio, mesmo quando ele não incita diretamente a violência, é fator de legitimação de atos violentos contra o grupo ao qual ele se dirige. É uma situação muito triste, principalmente em um momento em que está todo mundo preocupado e muito sensibilizado com o aumento desse tipo de violência extrema dentro das escolas. Ainda mais um ataque assim tão direto à figura do professor, que é absolutamente central para que a escola consiga realizar o seu potencial de ser um espaço não só de formação e de desenvolvimento intelectual, mas também de formação da cidadania, de proteção da criança e do adolescente e de proteção de direitos”.
Cultura de paz
Para Nelice Pompeu, a violência só vai diminuir com ações que estimulem a cultura de paz e valorizem a profissão. “Acho que é urgente a gente trabalhar a cultura da paz – e que não seja um projeto isolado. Tem que ser algo permanente para, pelo menos, se contrapor a essa plataforma do ódio”, sugere.
“A escola sozinha não consegue dar conta dos problemas. Temos um trabalho limitado, faltam redes de proteção. A profissão foi muito desvalorizada de uns anos para cá, como se qualquer pessoa pudesse chegar na sala de aula e dar uma aula. E não é assim. Estamos lidando com futuro. Temos uma responsabilidade nessa formação. E o professor não pode trabalhar amedrontado, intimidado, com medo de demissão ou de perseguição. Ele precisa ter um suporte”, alerta.
Para Marcele Frossard, a construção do projeto de combate à violência passa também pela punição a falas que estimulem a violência. “Esse deputado precisa ser punido. É importante ter algum tipo de declaração pública indicando que esse tipo de fala incita a violência e piora um ambiente que já é amedrontado e fragilizado devido ao que tem acontecido ao longo desse ano”, defende.
“A melhor maneira de fazer essa prevenção [da violência nas escolas] é através do fortalecimento de vínculos e da participação desses estudantes, do fortalecimento de instâncias como o grêmio estudantil e também do conselho escolar, para que todos tenham responsabilidades e façam parte dessa escola, formando esses estudantes para participação na sociedade democrática. E aí é importante que pais e responsáveis estejam envolvidos para que eles também entendam o sentido desse modelo de educação, que é um modelo preconizado na Constituição Brasileira”, recomenda.
Beatriz Graeff acrescenta que é fundamental que seja feito um levantamento constante sobre as violências que acontecem dentro das escolas. Por meio desse diagnóstico, acredita, é que será possível criar políticas públicas mais contundentes de combate à violência no ambiente escolar.
“A gente acredita que é muito importante que exista uma organização em torno de ferramentas que possibilitem um diagnostico mais preciso e mais frequente [dessas violências] e que a gente possa acompanhar mais diretamente o que está acontecendo nas escolas e a medida em que isso está acontecendo. Esse diagnóstico é muito importante para que seja possível desenhar ações, seja de prevenção de ataques, que é um tipo extremo de violência, como também de ocorrências mais cotidianas de agressão, incivilidade ou conflito, que podem ser sinais de alerta para uma escalada de violência que produza um estrago mais significativo”.
Bolsonaro
Procurado pela Agência Brasil, o deputado Eduardo Bolsonaro não se manifestou até a publicação da matéria. Em suas redes sociais, o deputado se manifestou sobre o ministro da Justiça ter determinado que a PF investigue as declarações feitas no evento.
“Um ministro da Justiça mobilizar a PF para investigar minha analogia sobre doutrinadores, que se aproveitam da posição de professores para escravizarem pela ideologia, agirem como traficantes que escravizam pela droga, ambas as situações propiciadas pela ausência dos pais no dia a dia dos filhos, é mais um degrau da escalada autoritária no Brasil”, escreveu.
“Lamentável ver a Polícia Federal, instituição da qual orgulhosamente faço parte, ser utilizada politicamente para satisfazer desejos autocratas de comunistas, enquanto verdadeiros criminosos parecem não se incomodar tanto”, acrescentou.
Edição: Fernando Fraga