Representantes do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e da Faculdade Baiana de Direito, do portal jurídico Jus Brasil, explicaram, nesta segunda-feira (23), no Ministério da Igualdade Racial, em Brasília, as conclusões da pesquisa sobre como o Poder Judiciário do Brasil julga crimes raciais contra pessoas negras cometidos em redes sociais. O levantamento foi feito a partir da análise dos 107 acórdãos (decisões colegiadas de um tribunal), entre julho de 2010 e outubro 2022.
A analista de programa de Gênero e Raça do Pnud no Brasil Ismália Afonso explica que é prática deste organismo internacional ofertar assistência técnica ao Brasil como forma de contribuir para a redução das desigualdades e promoção do desenvolvimento humano – inclusivo e sustentável. “Em uma parceria com o Jus Brasil, com a Faculdade Baiana de Direito, para o Ministério da Igualdade Racial, o Pnud tenta apoiar, a partir desse diálogo, a produção de políticas públicas baseadas em evidências e, por isso, mais assertivas e com maior sucesso para garantia de direito da população negra brasileira”.
Após a apresentação do relatório, a diretora de Ações Governamentais do Ministério da Igualdade Racial, Ana Mírian Carinhanha, disse que a nova pesquisa oferece ao governo federal insumos para entender as categorias das ofensas, os tipos de ameaças e, também, para saber como o poder judiciário tem lidado com as denúncias de racismo e injúria racial no segundo grau. “A pesquisa nos oferece tanto a possibilidade de aperfeiçoamento da prática do sistema de justiça, como, também, do entendimento de como esse fato social se dá a partir das opiniões das pessoas nas redes sociais. Isso nos oferece possibilidades de análise, de promoção de políticas públicas pautadas em evidências”.
Mesmo entendimento da diretora de Avaliação, Monitoramento e Gestão da informação do ministério, Tatiana Dias Silva. “As informações da pesquisa apresentada são instrumentos para nos fornecer mais evidências, meios de monitoramento e acompanhamento dessa situação, para que a ação possa ser cada vez mais efetiva e mais coordenada entre os atores com mandato e divulgadas e publicizadas para a sociedade civil. É um problema que deve ser de atenção de todos e todas, para que a gente pense numa sociedade mais democrática e inclusiva.”
Análise dos dados
O levantamento revelou que as mulheres são quase 60% das vítimas dos crimes de racismo e de injúria racial, julgados em segunda instância no Brasil. Os homens são 18,29% dos agredidos. E outros 23,17% não tiveram gênero identificado. Entre os tipos de agressão, os xingamentos com nomes pejorativos e animalização das vítimas são em maior número tanto contra mulheres, como em ataque aos homens negros. Em relação às mulheres negras, elas são ofendidas, sobretudo, em questões de estética, sexualidade e higiene, disseram os coordenadores do levantamento.
Sobre o perfil dos agressores é, sobretudo, entre pessoas do sexo masculino (55,56%), embora as mulheres agressoras correspondam a (40,74%). Este percentual feminino é superior ao que se costuma encontrar em pesquisas sobre outros tipos de criminalidade, conclui o levantamento. O professor da Faculdade Baiana de Direito, do Jus Brasil, e um dos coordenadores científicos do levantamento, Daniel Nicory, percebe que as ofensas racistas não mudaram. As redes sociais apenas amplificaram o racismo existente há séculos no país. “A maior surpresa é a intensidade da participação feminina. Há a vitimização feminina, mas, também a participação feminina entre as agressoras.”
O advogado e professor da Faculdade Baiana de Direito, Vinícius Assumpção, que atuou também como coordenador científico do levantamento, citou a nova lei que equipara a injúria racial ao racismo e torna, desde janeiro, os dois crimes inafiançáveis e imprescritíveis. Vinícius Assumpção diz aguardar os futuros monitoramentos para saber o impacto da lei. “Com a mudança legislativa, acompanhando o percurso dessas decisões, vamos ter a possibilidade de monitorar de que maneira o judiciário vai se comportar daqui para frente, nestas questões”.
Sugestões
A integrante do Fórum Nacional de Equidade Racial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), juíza do Trabalho Wanessa Mendes de Araújo, avaliou que este estudo permitirá que o poder judiciário faça uma autoavaliação sobre os padrões de julgamento e repreenda condutas discriminatórias e racistas nos tribunais. A magistrada entende que desde que começaram a ser implantadas medidas que contribuem na formação continuada de magistrados, o Judiciário tem dado mostras de que os crimes online não ficarão mais impunes. “O poder judiciário está atento e tem buscado, dentro de suas escalas nacionais e regionais, encontrar dentro do seu corpo técnico o letramento e com isso fazer desmistificar que as redes sociais e serviços de mensageria são um terreno de impunidades. Então, o mundo virtual também está sujeito à responsabilização e o poder judiciário está atento a isso.”
A diretora de Diversidade, Equidade e Inclusão do Jus Brasil, Priscila Cardoso, chamou a atenção para que as plataformas virtuais sejam responsabilizadas por crimes contra pessoas negras, quando hospedam jogos racistas em suas páginas. Os presentes à apresentação do relatório, nesta segunda-feira, citaram o jogo Simulador de Escravidão, que permitia castigar e torturar pessoas negras, antes de ser retirado do ar, pelo Google, em maio deste ano. “As plataformas não estão fazendo nada para combater o racismo. Então, está acontecendo racismo nos jogos, nas mídias. E isso não vai chegar na justiça porque, mesmo o pessoal sabendo que passa por isso e sofre, muitas vezes, nem tem acesso para entender que o racismo é crime e que ele pode obter justiça, em cima disso”, esclarece Priscila Cardoso, da Jus Brasil.
Os prints, que são as capturas de tela, foram as provas dos ataques racistas ou de injúrias raciais mais frequentemente mencionadas nos acórdãos, de acordo com o levantamento. Por isso, Priscila Cardoso também sugeriu apoio tecnológico para melhorar a obtenção dessas provas. “Tem um monte de tecnologia que a gente pode implementar. Precisam dar abertura para a criação de tecnologias para que a gente consiga, realmente, capturar esses prints e que eles sejam validados no processos.”
O assessor da Secretaria de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Eduardo Gomor, defende que o racismo seja combatido desde as escolas, com a educação para as relações étnico-raciais, conforme previsto na legislação brasileira (leis 10.639/2003 e 11.645/2008) que tornam obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar com ênfase nas disciplinas de história, arte e literatura. “São questões que vão ajudar a gente a tentar muito, muito gradativamente, reverter esses estereótipos que ainda estão cristalizados no imaginário social”, prevê Eduardo Gomor, assessor do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Agressores
A advogada Adriana Marques sugeriu que à representante do poder Judiciário e aos coordenadores da pesquisa que, nas próximas edições, sejam levantadas informações sobre a raça e a cor também dos agressores. “Para que a gente possa nominar, a gente vai precisar responsabilizar, falar de brancura, de supremacia branca no Brasil. Defendo que é estritamente necessário coletar essa informação. Mas, mais do que isso, seguir as categorias do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], porque há uma diferença importante, especialmente, para esse tipo de dado, por exemplo, entre pretos e pardos. Existem normativos, talvez protocolos também, para de fato dizer, ‘tem que coletar a raça/cor e as categorias são essas tais’, apontou a advogada.
Integrante do Coletivo de Mulheres Negras Baobá do Distrito Federal e Entorno, a jornalista Jacira da Silva defende uma mudança comportamental da sociedade. “Se aquele que é racista, machista e homofóbico assume, isso, é ter humildade. Admitir: eu sou, mas vou deixar de reproduzir frases racistas”. A ativista ainda citou outros atores no combate ao racismo. “Sonho que os nossos meios de comunicação pensem, reflitam, não reproduzam expressões racistas e todas as outras que são de cunho discriminatório. Na área governamental, via políticas públicas, que não se reproduza o racismo introjetado no imaginário da sociedade brasileira”, reforçou a militante.
Edição: Aline Leal