Pesquisar
Close this search box.

Governo quer ampliar parques para aumentar proteção Yanomami

Governo quer ampliar parques para aumentar proteção Yanomami

O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima estudam a ampliação e reclassificação de unidades de conservação federais no entorno do território Yanomami, em Roraima. “A ideia é fazer uma proteção adicional à terra indígena”, explica Mauro Pires, presidente do ICMBio, em entrevista exclusiva à Agência Pública.

De acordo com Pires, há a intenção de expandir em aproximadamente 50 mil hectares a  Estação Ecológica de Maracá e em 70 mil hectares o Parque Nacional do Viruá, duas unidades de conservação de proteção integral localizadas a leste e sudeste da terra Yanomami, respectivamente. 

Além disso, a Reserva Florestal do Parima, criada em 1961, vai mudar de categoria para seguir as regras do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), de 2000. Seus remanescentes – já que parte dela está sobreposta ao território Yanomami, homologada em 1992 – devem virar a Floresta Nacional (Flona) do Parima, contígua à área indígena, de um lado, e à Estação Ecológica de Maracá, do outro. A Flona terá cerca de 100 mil hectares, extensão correspondente à área de Belém do Pará.

Se isso de fato acontecer, será criada uma nova faixa de proteção de ao menos 120 mil hectares, o equivalente ao tamanho da cidade do Rio de Janeiro, à Terra Indígena Yanomami, a maior do país, que vive uma crise humanitária e ambiental causada pela invasão de cerca de 20 mil garimpeiros ilegais, segundo entidades indígenas. O desmatamento decorrente do garimpo explodiu em 309% no território desde 2018, conforme levantamento da Hutukara Associação Yanomami (HAY). “A nossa avaliação é de que, se o governo tivesse criado essas unidades de conservação lá atrás, muito provavelmente a gravidade da situação não teria chegado ao ponto que chegou”, diz Pires.

Formado em Ciências Sociais com mestrado em Sociologia e servidor de carreira especialista em meio ambiente do ICMBio desde 2009, Pires assumiu a presidência do órgão no fim de maio, depois de o cargo ter sido ocupado seguidamente por três coronéis da Polícia Militar durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). 

Seu nome foi escolhido por meio de um comitê que analisou 18 candidaturas e formou, ao fim, uma lista tríplice. A autarquia que ele comanda é responsável pela gestão e fiscalização de 334 unidades de conservação federais (terrestres e marinhas) em todo o país, cuja administração adequada é fundamental, segundo especialistas, para o combate ao desmatamento e às mudanças do clima.

À Pública, Pires falou também sobre alguns dos desafios do ICMBio nos próximos anos. Um exemplo é a criação de pelo menos 3 milhões de hectares em unidades de conservação federais na Amazônia até 2027, conforme previsto pelo Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), cuja quinta fase foi lançada pelo governo federal no começo de junho. A medida é considerada essencial por especialistas para que o Brasil cumpra a meta de zerar o desmatamento na Amazônia até 2030.

Entre os outros objetivos que o PPCDAm estabelece para as unidades de conservação, está a criação de planos de manejo – o documento guia para a gestão das áreas protegidas – para 100% das unidades de conservação em áreas prioritárias até 2027. O plano também determina a regularização fundiária de 40% das áreas de unidades federais no mesmo prazo. 

Para enfrentar o desmatamento em unidades de conservação federais, que cresceu 119% de 2018 a 2022 apenas na Amazônia Legal, Pires destaca a retomada do Bolsa Verde, programa do governo federal de transferência de renda a famílias que vivem no interior de áreas protegidas. 

Criado em 2011 e interrompido em 2017, o Bolsa Verde voltará a pagar trimestralmente quantias a essas comunidades. “O que a gente precisa é fortalecer e executar a política pública, trazer a educação, a saúde, a igualdade racial. É levando política pública que pessoas vão ser parceiras da conservação, porque elas veem o valor daquela área, têm ligação com a terra e com a floresta”, afirma.

Confira a seguir a entrevista.

O novo PPCDAm coloca como meta a criação de 3 milhões de hectares de unidades de conservação na Amazônia até 2027, com foco em áreas críticas de desmatamento. Já há um planejamento de como isso será feito, quais estados e modalidades de unidades serão privilegiados? 

A criação da unidade de conservação começa com uma análise de vários aspectos. Evidentemente, o aspecto da biodiversidade é um dos mais importantes, a gente olha para o endemismo [presença de espécies que ocorrem apenas em um determinado local], analisa se já existe uma representação daquela paisagem no Sistema Nacional de Unidades de Conservação [SNUC]. Depois vem a fase do estudo, quando se chega a uma proposta de desenho da unidade. Posteriormente, vamos analisar se aquela área é pública ou privada, se está sobreposta a terra indígena, assentamento, território quilombola ou se ali tem mineração, se é área na fronteira. 

Quando fizemos a estimativa de 3 milhões de hectares, foi olhando para o total de terra pública disponível na Amazônia que ainda não foi destinado. Evidentemente, vamos priorizar essas áreas, que estão, na maioria das vezes, sob ocupação irregular [28% do desmatamento na Amazônia Legal no último ano ocorreu em áreas não destinadas estaduais e federais]. Como o nosso objetivo é reduzir o desmatamento, é fundamental, no caso da Amazônia, dar destinação a essas áreas. Uma das finalidades dessa destinação é a unidade de conservação. Se for uma área que tem uma população tradicional, de extrativistas, seringueiros ou castanheiros, por exemplo, muito provavelmente será uma destinação de uso sustentável.

Para criar uma unidade de conservação ali, tem que ser algo associado ao modo de vida deles – a gente não cria de cima para baixo. Se for uma área sob intensa especulação de indígenas yanomami

ICMBio e MMA pretendem ampliar unidades de conservação para aumentar proteção à Terra Indígena Yanomami

Na Amazônia, há alguma previsão de quando devem ser criadas as primeiras unidades de conservação? 

Estamos discutindo a criação de unidades de conservação que estão em estágio bem avançado de finalização em Roraima e no Pará. Quando a ministra Marina Silva assumiu, foi feito um levantamento e se constatou que esses processos estavam parados. A gente não teve criação de nenhum hectare de unidade de conservação nos últimos anos, ao contrário, tivemos redução. A decisão da ministra foi olhar para os processos e analisar se estavam consistentes para que pudéssemos dar sequência. Encontramos processos associados a Roraima, coincidentemente muito próximos da Terra Indígena Yanomami. A nossa avaliação é de que, se o governo tivesse criado essas unidades de conservação lá atrás, muito provavelmente a gravidade da situação não teria chegado ao ponto que chegou. 

Quais são esses processos?

Em Roraima, temos unidades de conservação criadas nos anos 1960 como reservas florestais. Mas no SNUC, de 2000, que estabelece as categorias de unidades de conservação, não existe mais essa categoria chamada reserva florestal. Então estamos olhando para essas reservas florestais antigas do estado e reclassificando dentro da taxonomia dada pelo SNUC. Obviamente, não se trata apenas de uma reclassificação, estamos analisando também os aspectos ambientais da região. A ideia é que parte vire Floresta Nacional. Outra parte a gente percebe que faz todo sentido ser constituída como Estação Ecológica [categoria de proteção mais restritiva, que não prevê turismo, como é o caso das Flonas, por exemplo]. 

Quais são as unidades de conservação próximas à Terra Indígena Yanomami que vocês estão analisando? São contíguas ao território?

Sim, contíguas. A ideia é fazer uma proteção adicional à terra indígena. Na região, já temos a Estação Ecológica de Maracá e estamos analisando a expansão dessa unidade. Temos a Reserva Florestal do Parima, que estamos recategorizando [ela deve virar a Floresta Nacional do Parima, localizada nos limites da terra indígena]. Temos ainda o Parque Nacional do Viruá [que deve ser ampliado].

Imagem aérea do território Yanomami
Terra Indígena Yanomami é alvo de garimpeiros ilegais

A falta de planos de manejo ainda é um gargalo para a gestão e proteção das unidades de conservação? 

O plano de manejo é o instrumento mais importante de gestão da unidade. Por meio dele, se faz o zoneamento da área: define-se, por exemplo, as áreas passíveis de uso público, ou as áreas com aspectos ambientais que demandam a redução da presença [humana], inclusive de turistas. O ICMBio avançou muito na criação dos planos de manejo, hoje temos expertise. Antigamente, demorava-se a fazê-los, entre outras razões, porque eram vistos como documentos absolutos, que precisavam de um elevadíssimo grau de detalhamento, e uma vez prontos, eram inalteráveis. Hoje os planos de manejo são muito mais operacionais, e o nosso desafio é tê-los em todas as unidades. 

Outro entrave é a dificuldade de regularização fundiária – o processo de repassar para a União, no caso das unidades federais, toda a área existente em seu interior, o que pode implicar na desapropriação de propriedades privadas. De que forma sua gestão pretende enfrentar esse problema?

A maior  complexidade da regularização fundiária ocorre quando se trata de propriedade particular [existente na área onde a unidade de conservação foi criada]. Para fazer a desapropriação, você precisa ter certeza de que aquela área realmente tem título, tem uma cadeia dominial que a sustente. Muitas vezes, na análise, descobrem-se furos na cadeia dominial. Essa avaliação é algo que demanda tempo – essa é a primeira coisa. A segunda é que tem muita judicialização, seja pelo valor ou por outros aspectos que o proprietário não considera adequados.

O nosso desafio aqui é acelerar esse processo. Embora as unidades de conservação envolvam propriedades privadas, também envolvem terras públicas, que representam, em tese, um processo mais simples. Se acelerarmos o repasse de terras públicas para a gestão do ICMBio, ampliamos vertiginosamente a proporção de terra regularizada dentro da unidade de conservação. Isso é mais importante nas unidades que eventualmente podem ser usadas por terceiros [unidades menos restritivas que permitem algum tipo de uso econômico]. Por exemplo, para que o Serviço Florestal Brasileiro faça a concessão [de extração de madeira] dentro de uma floresta nacional gerida pelo ICMBio, é preciso ter certeza de que aquela área é do poder público. 

E para avançar em relação às terras privadas, o que é necessário?

Vamos nos valer dos recursos da compensação ambiental. Quando alguém quer construir  um empreendimento, o processo de licenciamento ambiental estabelece medidas de compensação pelo impacto ambiental desse empreendimento. Um dos mecanismos [previstos é que o recurso seja revertido para] a ajuda na gestão de uma unidade de conservação próxima. O agente privado pode adquirir terras dentro da unidade e doar para o ICMBio. A lei do SNUC já estabelece isso, o que depende de nós é [a disponibilização de] mais servidores para agilizar os processos. Outro mecanismo, dado pelo Código Florestal, é a cota de reserva legal. O proprietário rural que não tem mais a reserva legal [determinada pelo Código Florestal] na sua terra pode adquirir uma área dentro de uma unidade de conservação para fazer a compensação e repassá-la para o poder público. Se for uma unidade de conservação federal, pode repassar para o ICMBio. 

Outro dos objetivos do PPCDAm é cancelar todos os registros de Cadastro Ambiental Rural (Reserva Extrativista Lago do Cuniã, em Rondônia

A Reserva Extrativista Lago do Cuniã, em Rondônia, foi uma das unidades de conservação alvo do programa Adote Um Parque, que está suspenso

O que aconteceu com o programa Adote um Parque, uma das bandeiras do Ministério do Meio Ambiente de Jair Bolsonaro, que previa que empresas e pessoas físicas doassem recursos para a manutenção de unidades de conservação federais? Que outras formas de concessão florestal e incentivos a atividades sustentáveis em unidades de conservação serão postas em prática nessa gestão?

Já na transição, foi sugerido que olhássemos para a atuação do programa Adote Um Parque. Suspendemos os editais que estavam em aberto. Ou seja, agora não tem mais possibilidade de novas adesões ao programa, porque a gente quer avaliar primeiro o que os casos que foram concretizados significaram na prática. E evitar esse tipo de coisa – uma iniciativa que afeta a vida das pessoas sem consultá-las, como ocorreu com algumas reservas extrativistas. Como se faz uma iniciativa dessa sem pactuar com o conselho consultivo da unidade? Essa representação da população dentro da unidade precisa ser ouvida. E em outros lugares, tem que ser ouvida também a comunidade local.

O papel do ICMBio é trabalhar para o desenvolvimento de um determinado território por meio da conservação, porque vemos nisso uma oportunidade para alavancar a economia local. Dou como exemplo o Parque Nacional do Iguaçu [em Foz do Iguaçu, no Paraná], que é muito importante para a região toda. Gera incremento de renda, empregos, impostos para o poder público local.

Em seu discurso de posse, você afirmou que pretende “recuperar especialmente as reservas extrativistas”. Com condições favoráveis, é possível que os povos e comunidades tradicionais desempenhem papel semelhante ao dos povos indígenas na proteção do território? No ano passado, apenas 2% do desmatamento identificado na Amazônia ocorreu em terras indígenas, ainda que elas ocupem 23% da área do bioma.  

São populações diferentes, para deixar claro. À exceção de algumas, as reservas extrativistas também têm um grau de conservação muito grande, porque aquilo é o meio de vida delas [das comunidades]. Nas Resex marinhas, o trabalho que as marisqueiras fazem de conservação, de evitar que entre a pesca predatória, é muito grande. A população sabe quando fazer a pesca de uma determinada espécie, o tamanho [ideal] etc. É conhecimento tradicional passado de família em família. Isso é um mecanismo de conservação.

Às vezes, a gente olha para o desmatamento como único indicador, e não é bem assim. Em alguns lugares, o desmatamento é o fator mais crítico, mas em outros é o declínio dos recursos naturais, da biodiversidade, da espécie A, B ou C. Aí vão dizer que na Reserva Extrativista Chico Mendes [no Acre] tem um desmatamento muito grande, é verdade. Ali é um caso que nos preocupa bastante, porque o desmatamento se expandiu [nos últimos anos]. Mas quando se analisa por que expandiu, constata-se que localmente há uma campanha midiática contra as unidades de conservação e o aliciamento de populações [extrativistas] para atividades predatórias. Chega uma pessoa pedindo para criar gado na reserva em troca de dinheiro, e o morador, como está sem opção, já que não houve investimento naquela unidade de conservação, acaba bastante vulnerável.

Como enfrentar esse tipo de situação?

Estamos retomando o programa Bolsa Verde, que é um estímulo à conservação ambiental. As famílias que estiverem cadastradas no CADÚNICO dentro de unidade de conservação e comprometidas com a conservação vão receber um recurso trimestralmente [a expectativa é abranger inicialmente 30 mil famílias da Amazônia]. Isso não é nada novo, existe desde 2011, mas foi interrompido [na época eram concedidos R$ 300 reais a cada 3 meses]. Vamos voltar com esse programa. O que a gente precisa é fortalecer e executar a política pública, trazer a educação, a saúde, a igualdade racial. É levando política pública que pessoas vão ser parceiras da conservação, porque elas veem o valor daquela área, têm ligação com a terra e com a floresta. 

A gente quer saber onde vamos chegar daqui a dez anos. A minha gestão é nos próximos quatro anos, mas temos que ter um mapa do caminho. Onde a gente quer que as unidades de conservação estejam em dez anos? Em que situação de regularização fundiária, uso público, desintrusão, garimpo etc? Trabalhamos com um mapa estratégico para frente.

MAIS NOTÍCIAS

CATEGORIAS

.

SIGA-NOS