“Vou falar minha rotina. Levantei hoje às 5h, coei café, lavei as vasilhas sujas, cuidei das galinhas. Ai, depois, eu passo para a cozinha, cuido do café da manhã. Sempre observando tudo, porque mulher é mais observadora, observa onde a galinha está cantando, onde está botando o ovo, qual bicho ameaça a criação. Mulher faz não sei quantas utilidades por dia”.
Eram 11h da manhã quando Maria das Graças Galvão contava o que tinha feito até aquele momento. Ela detalhava o dia enquanto preparava o almoço para ela e o marido. A trabalhadora rural aposentada, de 71 anos de idade, conta que nunca deixou de trabalhar. Ela mora no assentamento Bananal, na zona rural do município de Peixe (TO) e é presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais da cidade.
“Em todos os lugares que a gente chega, eu ainda vejo uma grande falta de respeito com o idoso. Às vezes, até um olhar que a pessoa direciona a um idoso é discriminando”, diz. “Eu tenho 71 anos e eu realmente posso falar. Nós, idosos, somos carentes. O que aprendemos, o que temos de sabedoria, é realmente em cima das pancadas que a gente recebeu durante essa vida, criando família”.
Maria Galvão está entre as mais de 4,5 milhões de pessoas com 60 anos de idade ou mais que vivem nas áreas rurais do país, de acordo com o Anuário Estatístico da Agricultura Familiar 2023, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), com dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Assim como ela, 6,6 milhões de pessoas idosas estão aposentadas no campo por conta da idade. Pelas regras da aposentadoria rural, os homens podem se aposentar aos 60 anos de idade e as mulheres, aos 55 anos de idade. Mais de um quarto dessa população, 1,4 milhão, não têm nenhuma instrução ou têm menos de 1 ano de estudo e, a maioria, 2,6 milhões, são negras.
Considerada a população rural ativa, com 14 anos ou mais, a maioria, 87%, ganha até dois salários mínimos, o que equivale a R$ 2.640. Desses, 27% recebem menos de meio salário mínimo, ou seja, até R$ 660.
A palavra mais repetida entre as pessoas idosas do campo e especialistas entrevistados pela Agência Brasil é respeito. Respeito que falta a essa população e que está garantido em lei, no Estatuto da Pessoa Idosa, que completa neste dia 1º, 20 anos. Com 118 artigos, o estatuto visa regulamentar os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 anos. Ele amplia os direitos já previstos na Lei Federal 8.842, de 4 janeiro de 1994 e na Constituição Federal de 1988.
“O estatuto nos ajudou bastante, muito mesmo, mas ainda hoje temos pessoas no campo que não têm conhecimento de cobrar o seu direito. Já aconteceu de eu chegar no banco e ter idoso na fila com não sei quantas pessoas na frente. Eu pergunto por que estão ali, e dizem que não querem passar na frente. As pessoas não se preocupam muito em convencer os idosos de seus direitos”, disse Maria Galvão.
Falta de cuidado
O estatuto prevê uma série de garantias às pessoas idosas, desde as prioridades nos serviços ao direito à liberdade, educação, cultura, esporte e lazer, direito à saúde, ao Sistema Único de Saúde (SUS), garantia de alimento, previdência social e proteção.
“As pessoas idosas precisam ser bem cuidadas e não desrespeitadas. Tem gente que abraça essa causa e tem outras que não estão nem aí para eles mesmos, quanto mais para a pessoa idosa”, defende o secretário da Terceira Idade da Contag, Antônio Oliveira. Oliveira, de 66 anos de idade, produtor rural em Nossa Senhora Aparecida (SE), aposentado e, mesmo assim, como Maria Galvão, segue trabalhando na roça.
“Vou lhe dizer, você pega e lê o estatuto, vê que tem muita defesa no estatuto. Você vê um monte de proteção, mas quando vai até o banco receber o dinheiro, tem que enfrentar aquela fila, tem transporte que não para porque a pessoa idosa não vai pagar ou vai pagar menos. Eu acho que melhorou, mas tem muita discriminação, o estatuto precisaria ser mais divulgado”, defende.
A assessora da Contag Adriana Souza, que representa a entidade no Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, reclama que falta fiscalização para que a lei seja cumprida. “É uma pauta que a gente reivindicou bastante, para que o estatuto alcance as pessoas que estão na zona rural. A gente sabe das dificuldades das políticas públicas chegarem [às pessoas] e na zona rural é ainda mais difícil que na zona urbana. Apesar da lei ser muito festejada, ainda há muito que melhorar na implementação. O estatuto trouxe a previsão de fiscalização, que nem sempre é cumprida”.
Violações em casa
Além de não serem priorizadas nos atendimentos e nos serviços, Antônio Oliveira conta que muitas das violações que ocorrem contra os direitos das pessoas idosas no campo são praticadas pela própria família e que isso torna mais difícil ainda as denúncias.
“É um problema, a gente pede para eles irem na delegacia ou na promotoria pública ou liguem para o Disque 100 e digam o que está acontecendo. Mas quando é familiar, eles não têm coragem de fazer isso, sabe”, revela o secretário. “Eles não querem fazer essas denúncias porque dizem que é da família, que é feio fazer isso, mas a gente sempre diz que feio é a família estar ameaçando vocês, dizendo que quer dinheiro, que quer isso ou aquilo outro”.
Dados do Disque 100 mostram que cerca da metade das violências cometidas contra pessoas idosas são cometidas pelos próprios filhos. Além disso, grande parte ocorre na casa da própria vítima, onde mora ou não com o autor das violências. Entre as violências mais cometidas estão a violência física, psíquica e patrimonial.
O Disque Direitos Humanos – Disque 100 é um serviço de utilidade pública do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Para acioná-lo, basta discar o número 100 no telefone ou celular. Qualquer pessoa pode reportar alguma notícia de fato relacionada a violações de direitos humanos, da qual seja vítima ou que tenha conhecimento.
Em 2022, foram feitas 96 mil denúncias de violência contra pessoas idosas. Não é possível distinguir quais delas foram cometidas em áreas urbanas ou rurais. Os filhos estão o topo dos agressores. Desse total, 48 mil, ou seja, a metade, foram cometidas por eles. Quase a metade, 43 mil, ocorreram nas casas onde moram as pessoas idosas e os agressores, e 42 mil, na casa onde moram apenas as pessoas idosas.
As violências mais comuns são físicas, que envolvem exposição de risco à saúde, maus tratos, abandono e insubsistência material; e psíquicas, como tortura psíquica, insubsistência afetiva e constrangimento. Em seguida, estão as violências patrimoniais. Apenas no primeiro semestre deste ano, já foram feitas 65 mil denúncias, que seguem o mesmo padrão dos anos anteriores.
“Temos a rede de proteção à pessoa idosa, criada em 2006, uma rede nacional composta por Promotoria do Idoso, Vara do Idoso, Defensoria do Idoso, Conselho de Direitos do Idoso, delegacias, entre outros. O Brasil é muito extenso e a atuação não chega a essas pessoas, tem que ter atuação mais efetiva”, defende a assessora da Contag, Adriana Souza.
Acesso aos serviços
A representante da Pastoral da Pessoa Idosa no Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, Bernadete Dal Molin Schenatto, ressalta que, no Brasil, as pessoas envelhecem de forma desigual, dependendo da situação socioeconômica, e que falta a universalização do acesso a serviços públicos, sobretudo para populações rurais.
“Estamos diante de um país enorme, com muita desigualdade no envelhecimento. As pessoas que nasceram de 1945 a 1964 já chegaram aos 60 anos ou estão chegando lá. A realidade do campo é um pouco mais cruel se a gente considerar as questões de gênero, de renda, de escolaridade as questões econômicas”.
Em relação à saúde, segundo Bernadete Schenatto, a pastoral presta atendimento a pessoas idosas em situação de vulnerabilidade, e “uma questão recorrente é o fato de precisarem se deslocar de suas comunidades para receberem atendimento. Muitos acabam não voltando dos hospitais”.
O estatuto prevê que as pessoas idosas têm direito ao atendimento domiciliar, incluindo a internação, para a população que dele necessitar e esteja impossibilitada de se locomover, inclusive para as pessoas idosas abrigadas e acolhidas por instituições públicas, filantrópicas ou sem fins lucrativos e eventualmente conveniadas com o poder público, nos meios urbano e rural.
“A pessoa idosa, nos momentos cruciais da vida, tem que se deslocar para hospitais de alta ou media complexidade que estão localizados, muitas vezes, a 200 km, 300 km de onde moram. Para acessar o tratamento, a pessoa idosa, no final da vida, está longe dos familiares, dos amigos e da comunidade. É preciso que se humanize esse atendimento”, defende Bernadete Schenatto.
Outro desafio apontado pela conselheira é a garantia do acesso à seguridade social. “O que as pessoas reportam para nós é que é muito difícil inclusive agendar o atendimento. Aí, tem outra questão que precisamos nos atentar. A geração que nasceu nessa fase não é tecnológica. Ela tem extrema dificuldade de fazer agendamento e isso também depende se é analfabeta ou analfabeta funcional, se tem ou não tem acesso a dispositivos e sinal 4G, se não tem alfabetização tecnológica. A pessoa vai uma vez e não resolve, porque o processo é burocrático, tem que levar documentos, não é fácil”.
De acordo com ela, é preciso que o serviço de seguridade ajude mais as pessoas, oriente, faça possível para evitar os reagendamentos.
Outra demanda importante, de acordo com Bernadete Schenatto, é a definição de uma Política Nacional de Cuidados, atualmente, em discussão pelo governo federal. A política deverá elaborar iniciativas para garantir direitos às pessoas que exercem função de cuidador – seja um membro da família ou um trabalhador remunerado.
As medidas voltadas para as pessoas idosas, no entanto, precisam de celeridade, como ressalta a conselheira. “Precisamos que seja rápido, já estão na situação de vulnerabilidade do envelhecimento. A prioridade para quem envelheceu é ontem. Não se sabe quanto tempo vive, nem se pode avaliar a dimensão da dor de cada um, da solidão de cada um, da falta de atenção, da falta de tudo. Isso tem que ser acelerado”.
Edição: Fernando Fraga