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Corrida por eólicas no mar preocupa pescadores no Ceará

Corrida por eólicas no mar preocupa pescadores no Ceará

Se alguém percorresse o litoral cearense inteiro beirando o mar, avistaria parques eólicos sobre campos de dunas em quase todas as praias da costa. Agora imagine olhar para o oceano e ver também uma coleção de milhares de torres eólicas nas águas, ligadas ao continente através de cabos de transmissão de energia, subestações e outras infraestruturas industriais de grande porte.

Esta pode ser a paisagem que os banhistas verão se forem construídos os parques eólicos offshore – complexos de produção de energia obtida a partir do vento instalados no mar – que estão sendo planejados para o Estado. Essa é uma modalidade de geração de energia que ainda não existe no Brasil, mas já há uma corrida de interessados cadastrando pedidos para a instalação desse tipo de empreendimento em toda a costa brasileira.

Turbinas eólicas sobre duna na costa cearense
Turbina eólica sobre duna na costa cearense

Em novembro de 2020, o Ibama lançou um Termo de Referência que orienta o que os empreendedores devem apresentar nos estudos de impacto ambiental para avaliar a viabilidade dos projetos. Até então, menos de 10 projetos desse tipo haviam sido cadastrados no órgão. Após o lançamento do termo, houve um salto. Há hoje 74 projetos pré-cadastrados na plataforma do Ibama para todo o país, de acordo com o último mapeamento divulgado pelo órgão, em março deste ano. A maior parte está no Ceará e no Rio Grande do Sul (22 pedidos para cada estado).

Nenhum deles ainda está licenciado, e a maioria está apenas em fase de pré-cadastro, não tendo nem apresentado os estudos de impacto ambiental ainda. Mas só a movimentação por parte dos empreendedores, aliado a um grande empenho do governo do Ceará em garantir esses investimentos para o estado, já vem causando preocupação às populações da zona costeira, principalmente às comunidades de pescadores artesanais.

O boom de interesse por essas eólicas – mais do que gerar eletricidade para o consumo em terra – tem a ver com a expectativa de que essa energia renovável possa alimentar a produção do chamado hidrogênio verde (ou H2V), que vem sendo exaltado como “combustível do futuro”. 

A ideia é produzir em larga escala uma alternativa limpa aos combustíveis fósseis, voltada principalmente para exportação, em meio aos esforços globais para reduzir a emissão de gases que provocam o aquecimento global.

Uma das principais maneiras de obter o hidrogênio é pela hidrólise (quebra) da molécula de água (H2O), um processo que demanda muita energia. É aí que a produção das eólicas offshore entraria. O governador Elmano de Freitas (PT) assumiu o projeto como uma bandeira do seu governo.

O Estado já assinou cerca de 30 memorandos de entendimento com empresas interessadas em produzir energia renovável e hidrogênio verde. Em 19 de janeiro deste ano foi lançada a primeira molécula de hidrogênio verde produzida no Brasil no recém-criado HUB de Hidrogênio Verde do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP). Na ocasião, Freitas definiu como “um dia histórico”.

Só na costa cearense, está prevista a instalação de 3.921 turbinas eólicas, com potencial de geração de mais de 56 GW de energia. É mais que o dobro da capacidade instalada hoje nos 869 parques eólicos instalados em todo o Brasil – 24,13 GW –, que representam 12,5% da matriz energética brasileira, segundo dados da Associação Brasileira de Energia Eólica e Novas Tecnologias (Abeeólica). 

A implementação dos parques offshore, porém, está envolta em incertezas. Faltam referências e pesquisas sobre impactos de eólicas no mar no hemisfério sul – pelo simples fato de que ainda não existe nenhum empreendimento desses por aqui. Por um lado, isso dificulta a própria análise dos impactos dos empreendimentos; por outro, gera angústia nas comunidades da região.

Calejadas com a rápida expansão de parques eólicos nos últimos anos – em um processo de ocupação de território que foi muitas vezes cercado de violações de direitos –, as populações locais temem que a chegada das offshore repita e amplie os conflitos, atingindo em cheio a pesca artesanal.

Nos últimos dois meses a Agência Pública visitou comunidades na costa do Ceará que podem ser afetadas pelos empreendimentos. Alguns já vêm se organizando para tentar ter voz nesse processo e minimizar os impactos da transição energética. Mas o que mais encontramos foram pessoas aflitas diante do desconhecido.

É esse o caso dos pescadores de Barra das Moitas, praia do município de Amontada, a cerca de 200 km de Fortaleza. A comunidade é um dos locais onde foram feitos os primeiros protocolos de consulta prévia do Ceará, elaborados com a coordenação do Instituto Ecomaretório.

“Está com quase dois anos que a gente tomou conhecimento desse projeto, e já sendo informados de que não era bom para as comunidades costeiras, porque já temos um projeto de uma empresa de energia aqui bem vizinho na terra, e os benefícios deles foram mais malefícios do que benefícios”, diz o pescador tradicional Jairo Antônio de Sousa.

“O nosso mar já é ocupado pelos pescadores, ele não é uma área livre. Quantos mil pais de família não são empregados dentro desse mar, tirando o sustento todo dia, da pesca da sardinha à lagosta?”, questiona. 

A principal preocupação dos pescadores artesanais se refere a eventuais limitações ao trânsito de embarcações nas proximidades de onde serão instaladas as torres. Pelos projetos já apresentados, elas podem ficar muito próximas à praia e sobrepostas aos locais onde hoje é feita a pesca ou no caminho que os pescadores fazem para chegar até os pontos de pesca.

Um dos únicos projetos que chegou a iniciar o processo de licenciamento ambiental no Ceará é o Complexo Eólico Offshore Caucaia, na região metropolitana de Fortaleza, apresentado pela empresa Bi Energia, de capital italiano. Nele, 59 aerogeradores seriam instalados em uma área que vai de 3,5 km aaté quase 20 km de distância da praia. 

O Ibama negou a licença prévia ao empreendimento em agosto de 2020, por considerar os estudos de impacto ambiental inconsistentes e omissos em relação à possível “perda de área de trabalho para a comunidade pesqueira, devido à criação de zonas de exclusão de pesca e navegação”, conforme o parecer técnico.

A referência para a decisão foi um estudo do próprio órgão sobre modelos decisórios ambientais aplicados na Europa para empreendimentos eólicos offshore. O documento relata que em países como a Bélgica, uma faixa mínima de 500 m de afastamento do parque offshore foi definida como área de segurança, que não pode ser ultrapassada por embarcações que não sejam de manutenção ou fiscalização. Segundo a análise, isso “tem gerado reclamação por parte dos pescadores locais do país”.

Se uma regra como essa de zona de exclusão for implementada para as offshores brasileiras também, os pescadores no Ceará temem que prejudique a sua atividade. Como a maioria usa barcos movidos à vela, a navegação não pode ser feita caso precisem desviar de uma série de torres.

Segundo a pesquisadora Adryane Gorayeb, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), que estuda impactos socioambientais da energia eólica, 70% das embarcações no estado são movidas a vela e precisam de espaço para navegar. Se todos os parques eólicos cadastrados no Ibama forem concretizados, podem criar uma espécie de “paredão” em toda a costa do estado, define a pesquisadora.

O biólogo e professor Júlio Holanda, especialista em eólicas e transição energética, concorda que seria um cenário inimaginável no Ceará. “Porque as embarcações não andam em linha reta, o que seria necessário para conseguir desviar das torres. A sabedoria dessas embarcações é de ziguezague, elas vão seguindo os ventos, as correntes marítimas, não é um fluxo linear. Então, isso é uma grande preocupação: como é que você vai fazer esses desvios e deslocamentos em áreas de exclusão?”.

Gorayeb destaca que há ainda muitas incertezas sobre esses empreendimentos, o que gera insegurança. “Nós não sabemos de fato quais são os impactos em termos biogeofísicos nos mares tropicais, porque não existe nenhum estudo sobre isso. Nós também temos uma singularidade da nossa costa, principalmente no Nordeste setentrional, onde ainda existem muitos pescadores artesanais. Há estudos que demonstram que 70% do pescado que se consome no Brasil vem da pesca artesanal e dos nossos mares próximos”, complementa.

Dados da plataforma Comex Stat, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviço (MDIC), sobre o comércio exterior do país, revelam a importância da pesca local não só para os trabalhadores, mas para a própria economia. Em 2022, o estado do Ceará ocupou a primeira posição em exportação de pescados, abrangendo 25% das exportações brasileiras de pescado (que inclui a produção artesanal e industrial).

Imagem aérea da costa cearense mostra divisa entre mar e faixa de areia, com turbinas eólicas ao horizonte
“Nós não sabemos de fato quais são os impactos [das eólicas] em termos biogeofísicos nos mares tropicais”, diz pesquisadora

Holanda, que publicou em junho o estudo “Cenários, desafios e oportunidades para a produção de hidrogênio verde no Brasil: uma análise a partir do estado do Ceará”, junto com Soraya Tupinambá, do Instituto Terramar, destaca que faltam também pesquisas que avaliem o impacto cumulativo dos empreendimentos, ou seja, como eles se somam. 

“Fazem-se estudos muito isolados de um impacto de um aerogerador, de um parque. Mas como esses parques se sobrepõem? O território é o mesmo”, alerta Holanda, com relação à proximidade entre os empreendimentos. “Imagine não só eles em funcionamento, mas como se vai fazer para chegarem lá os equipamentos, como serão instalados, fixados no solo. Toda a infraestrutura de embarcação, óleo com risco de derramamento, a manutenção”, complementa.

Procurado pela reportagem, o Ibama, que é o órgão responsável pelo licenciamento dos empreendimentos, disse que “a troca de experiências, conhecimentos técnicos e boas práticas podem motivar modelos regulatórios ambientais seguros e transparentes, de forma a minimizar os potenciais impactos de instalação e operação, e potencializar a transição energética em curso”.

A presidente executiva da Associação Brasileira de Energia Eólica e Novas Tecnologias (Abeeólica), Elbia Gannoum, afirmou sentir “tranquilidade” com o futuro das offshore no Brasil. “Como a legislação está sendo construída e estamos fazendo isso bem depois do resto do mundo, a gente não vai viver muitos dos problemas que ocorreram em outros lugares porque aprendemos o que não fazer”, disse, em referência especialmente aos projetos já existentes na Europa.

Estudos que vêm sendo feitos sobre os impactos de eólicas offshore no hemisfério Norte avaliam, por exemplo, se o tráfego de embarcações, a instalação de equipamentos e cabos elétricos, os ruídos e luzes de turbinas podem ter efeitos negativos para a vida marinha, as características geofísicas dos ambientes e as atividades sociais. Entre os riscos estão perda de habitats, alteração de correntes marítimas, contaminação química, desaparecimento de espécies, colisão e restrição de rotas marítimas para embarcações, além da perda de áreas de pesca e de atratividade turística.

Gannoum reconhece a importância de garantir o distanciamento das torres da costa, pelos impactos não só à pesca, mas também a outras atividades econômicas, como o turismo. “Projetos muito próximos à costa simplesmente não deverão ser autorizados, porque já temos a diretriz no Termo de Referência do Ibama que prevê a distância mínima de 20 km”.

Comunidades costeiras reclamam de falta de diálogo

Em audiência pública realizada em maio na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) para discutir os projetos de parques de energia eólica offshore, uma das críticas foi de descaso com os questionamentos levantados pelas populações atingidas em relação aos impactos socioambientais em seus territórios.

“Ninguém entende melhor do mar do que os pescadores e pescadoras”, resumiu Maria Helena Soares, da Articulação Povos de Luta (Arpolu).

Estiveram presentes na audiência, convocada pelo deputado estadual Renato Roseno (PSOL), moradores de cerca de 40 comunidades de 15 municípios do estado, além de movimentos sociais e organizações de direitos humanos. Durante a audiência, o pescador e líder comunitário Tita, de Tatajuba, município de Camocim, afirmou: “A nossa forma de viver é uma ameaça ao sistema, por isso querem nos destruir”.

Audiência realizada pela Assembleia Legislativa do Ceará para discutir os projetos de parques de energia eólica
Faltam estudos sobre impactos ambientais e sociais desses empreendimentos

Outras pessoas também reclamaram da falta de diálogo do governo do estado com as comunidades. Procurado pela Pública, o governo não atendeu aos pedidos de posicionamento, mas no mesmo mês da audiência pública, o governador cearense Elmano de Freitas reuniu-se com movimentos e organizações sociais da zona costeira. 

Ele firmou compromissos, no sentido de assegurar os direitos das populações costeiras e da pesca artesanal, considerando os múltiplos usos do mar e a resolução de conflitos. Também prometeu abrir e manter um canal de diálogo aberto e efetivo com a sociedade civil.

A questão dos múltiplos usos do mar deve ser central nas discussões que virão sobre o planejamento dos parques eólicos offshore no país, já que não só a pesca artesanal, mas todo o conjunto de atividades desenvolvidas no mar nunca foi oficialmente identificado e mapeado no Brasil. 

Isso deveria ser contemplado em um Planejamento Espacial Marinho – mapeamento do espaço marinho, com o objetivo de identificar as potencialidades ambientais, sociais e econômicas e de gerenciar atividades e recursos diversos, como a produção de petróleo e gás, energias renováveis, transporte marítimo, unidades de conservação, pesca e aquicultura.

Uma Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, que reúne a Marinha do Brasil e 14 ministérios, foi constituída para executar esse planejamento, que deve iniciar pela região Sul, onde a estimativa é de que o trabalho seja concluído em três anos. No restante do país, somente em 2030, conforme compromisso assumido durante a Conferência da ONU para os Oceanos, em 2017.

A despeito disso, o mar de toda a costa brasileira já está sendo disputado por grandes empresas interessadas no novo mercado eólico. Além do Ceará, a costa dos estados do Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina também tem projetos de eólicas offshore pré–cadastrado.

Corrida do hidrogênio

O Ceará tem corrido para sair na frente nessa história, de olho em uma demanda global. Por um lado, há um interesse em novas fontes de energia, em especial em viabilizar substitutos ao petróleo, dentro da transição energética necessária para reduzir as emissões de gases de efeito estufa a fim de conter o aquecimento global e as mudanças climáticas. Mas a sustentabilidade não é o único motivo para o boom do H2V. O conflito entre Rússia e Ucrânia e a escassez do petróleo e gás natural russos também impulsionam a Europa nessa direção.

A versão “verde” do hidrogênio é considerada fundamental na transição para uma economia de baixo carbono, além de viabilizar a expansão do uso de carros elétricos em substituição aos automóveis de motor a combustão. Ela também “oferece uma perspectiva de descarbonizar setores que são difíceis de descarbonizar, como siderurgias, indústrias de cimento, transporte marítimo, aviação, que emitem grandes quantidades de carbono”, explica o pesquisador brasileiro Eric Cezne, da Universidade de Utrecht, nos Países Baixos.

Infográfico mostra o caminho do hidrogênio verde produzido por eólicas do Ceará até a Europa

Pensando nessas possibilidades, o governo do Estado lançou em maio o Corredor de Hidrogênio Verde e a Parceria de Portos Verdes, ligando os portos de Pecém, no Ceará, e de Roterdã, na Holanda, para o transporte do combustível produzido no estado em direção à Europa. Os acordos também preveem cooperação bilateral e troca de conhecimento entre empresas dos dois países. 

Em abril, a Câmara Setorial de Energias Renováveis da Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará (Adece) aprovou uma proposta de criação de projeto de lei criando a Política Estadual do Hidrogênio Verde, que foi submetida à apreciação do governador.

A movimentação estadual tem contrapartida no âmbito federal. No ano passado foi lançado o Programa Nacional do Hidrogênio Verde (PNH2), criado pela Resolução Nº 6 de 23 de junho de 2022 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). No Senado Federal, foi instalada uma Comissão Especial para Debate de Políticas Públicas sobre Hidrogênio Verde, sob a presidência do senador Cid Gomes (PDT), que é cearense.Junto do planejamento a respeito do novo mercado, corre uma série de deliberações para os empreendimentos offshore, contemplando a regulamentação da cessão de uso de espaços físicos e recursos naturais, os requisitos e procedimentos necessários à obtenção de outorga de autorização e as regras para a exploração do potencial energético. É o caso do Decreto Presidencial 10.946 e dos Projetos de Lei 11.247/2018, 576/2021 e 3.655/2021, em tramitação.

Transição energética justa, popular e democrática

Pesquisadores e sociedade civil chamam atenção para o risco de reprodução de injustiças históricas nesse processo de mudança nas matrizes energéticas. 

Soraya Vanini Tupinambá, sócia-fundadora do Instituto Terramar, que há 30 anos atua na zona costeira do Ceará, tem acompanhado de perto os desdobramentos locais dessa dinâmica global e denuncia o racismo ambiental por trás da energia renovável que vai alimentar a produção de H2V no estado.

Durante a audiência pública na Alece, Soraya lembrou os impactos ambientais causados pelos parques eólicos instalados em terra. Entre os impactos, estão a ocupação de milhares de hectares com perda de terras agricultáveis e campos de dunas, que funcionam como reservas de água doce – fundamentais para um estado com maior parte de seu território localizado no semiárido.

Os primeiros parques eólicos em terra foram instalados na região na década de 2000 como alternativa diante da crise hídrica que atingia boa parte do país. Hoje, o Ceará já tem mais de 100 parques, como parte de um movimento que busca diversificar a matriz elétrica, assim como aumentar a fatia de fontes renováveis.

O que pesquisadores e organizações civis apontam é que para alcançar um debate efetivo sobre transição energética seria necessário também considerar, além da mudança de matriz, a redução do consumo energético.

“Se quisermos manter o mesmo nível de geração e de consumo só alternando a fonte, essa conta jamais vai fechar. Se quisermos manter o mesmo ritmo de produção e crescimento industrial, trocando apenas o ‘como gerar energia’, mas sem discutir o quanto de energia vamos produzir, vamos cair nessas ciladas porque vamos precisar, por exemplo, de muito aerogerador, de muita terra e território, aumentando conflitos”, avalia Julio Holanda.

E os atingidos pelos conflitos são frequentemente os mesmos: comunidades e populações tradicionais, indígenas, quilombolas, periféricas. Grupos sociais que têm se unido na elaboração de um conceito mais amplo: a transição energética justa, popular e democrática. 

Desenho feito por moradores em muro com a frase "fora eólicas dos nossos territórios"
Com 22 projetos de energia, estado quer liderar produção do combustível

Para Holanda, a proposta passa por questões como a autogestão e a geração de energia descentralizada – com a oferta de aerogeradores em comunidades e placas solares em casa, por exemplo. “A energia tem que ser considerada como bem comum. Com isso seria possível fazer essa transição sem gerar o mesmo impacto. Mas entramos na lógica de mercado, com os grandes empreendimentos apresentados como solução”, diz.

Na falta de uma política de estado voltada para isso, organizações, movimentos sociais e comunidades têm recorrido à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que recomenda a realização de consulta prévia, livre e informada diante de qualquer intervenção em territórios tradicionais.

Em âmbito estadual, essa recomendação foi tornada obrigatória na implantação dos empreendimentos de produção de hidrogênio verde por resolução do Conselho Estadual do Meio Ambiente do Ceará, a fim de envolver a participação das comunidades nos processos decisórios.

O Instituto Ecomaretório coordenou a elaboração dos primeiros protocolos de consulta no Ceará. As comunidades de Barra de Moitas (Amontada), Morro dos Patos (Itarema), Tremembé da Barra do Mundaú, Apiques e Praia da Baleia (Itapipoca) já possuem seus protocolos, uma espécie de manual que orienta quando, como e onde a consulta deve acontecer. Eles já foram entregues ao Ibama e à Secretaria Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, em Brasília.

A advogada e pesquisadora Melka Barros, uma das coordenadoras do Ecomaretório, destaca: “Tem uma questão muito interessante no documento, ele fala que as reuniões precisam ser marcadas de acordo com o modo de vida comunitário, considerando as atividades produtivas, culturais e sociais, como por exemplo o tempo de roçado, o plantio, pesca, permanência dos pescadores no mar e as festas comunitárias”.

Os protocolos também trazem a cartografia social das zonas costeiras e marinhas na região de cada comunidade, elaborada em parceria com o Laboratório de Geoprocessamento e Cartografia Social, da Universidade Federal do Ceará, coordenado pela professora Adryane Gorayeb. 

Foram identificados 230 portos comunitários, 451 estruturas de currais de pesca, 600 pontos de pesca, 96 espécies marinhas e 204 áreas de pesca no Ceará.

Tudo isso compõe o que é chamado de maretório – nome dado a áreas do mar tradicionalmente ocupadas onde se desenvolvem não só as atividades produtivas, mas também as relações sociais e culturais.

Dinâmicas e interesses internacionais em torno do hidrogênio verde

Além de coordenar o Instituto Ecomaretório, Germana também tem se dedicado a compreender a conjuntura geopolítica por trás do mercado de hidrogênio verde. Mestranda em Ciências Jurídico-Econômicas na Universidade do Porto (Portugal), ela desenvolve uma pesquisa sobre comércio internacional e rastreamento de cadeias produtivas associadas a impactos socioambientais e violações de direitos de povos e comunidades tradicionais. 

Suas investigações têm mostrado que o cenário de regulamentação na União Europeia para o hidrogênio verde promove uma facilitação de sua circulação, com exigências de certificações atestando apenas a produção com base em energia renovável, escamoteando as injustiças socioambientais por trás da forma como ela é produzida.

“A nossa intenção, do ponto de vista internacional, é chamar a atenção de que esse produto, assim como a pecuária, os grãos, a madeira e o ouro, precisa de uma atenção especial porque está violando direitos e causando destruição dos ecossistemas”, alerta.E alguns dos principais responsáveis por isso seriam exatamente as empresas proponentes dos projetos de parques eólicos offshore no Brasil que são, em sua maioria, de capital europeu, com origem na Itália, França, Luxemburgo, Inglaterra, Dinamarca, Noruega, Portugal e outros países.

A vida entre a praia, o mar e o rio

“Tem uma frase de um livro que diz assim: o fim do mundo poderia ser só um rio sem peixes, contaminado com óleo, uma mata destruída. Para nós, esses parques eólicos no mar seriam o nosso fim do mundo. A longo prazo, não dá para prever o que poderia acontecer. E tudo está conectado: o mar com o rio e a nossa pesca. Se afeta o mar, ele também entra no rio quando a maré enche. Afetando o rio, afetaria também a gente, as aves, o carangueijo, o peixe”, analisa o pescador Mateus Sousa, morador da comunidade de Barra de Moitas, em Amontada.

A chegada da nova tecnologia eólica marinha atualiza o medo sobre o que pode acontecer com seus modos de vida e a própria sobrevivência. A soberania alimentar e a geração de renda são elementos atravessados por um jeito de viver, explica a pesquisadora Adryane Gorayeb.

“É uma cultura, uma identidade tradicional vinculada aos recursos naturais e àquele modo de sobrevivência totalmente atrelado e íntimo dessa natureza costeira, marinha. Música, dança, festa, comida, artesanato, está tudo vinculado à pesca”, resume.

O pescador e agricultor Valyres de Sousa, da comunidade de Caetanos de Cima, em Amontada, descreve a sua ancestralidade ligada àquele território, onde seus antepassados já viviam há muitas gerações. “Na época da ditadura, eles foram expulsos das terras onde moravam. Eram indígenas da região, os verdadeiros donos da terra, os povos originários”, conta.

Valyres tem uma visão dos impactos dos parques eólicos offshore, ressaltando que, além da pesca artesanal, outras atividades também podem ser prejudicadas, como o turismo.

“Qual é o turista que vem para usufruir daquele espaço, para olhar um mar bonito e chegar e encontrar um parque eólico?”, questiona Ana Lima, companheira de Valyres. Possivelmente, a visão que os visitantes terão será de uma paisagem de imensos aerogeradores, linhas de transmissão, subestações, espigões. 

Ana e Valyres fazem parte da Rede Cearense de Turismo Comunitário (Tucum), uma articulação formada em 2008 por grupos de comunidades da zona costeira que oferecem hospedagem e visitação, a partir de uma vivência de integração com o modo de vida tradicional.

No espaço do casal, que se chama “Cabaça de Colo”, o turista pode ver um pouco do que compõe o cotidiano local, dividido entre a pesca artesanal, o manejo do quintal produtivo, o plantio e colheita da roça e a criação de animais. “O turismo comunitário não é só o turismo, ele é um movimento de resistência da zona costeira”, diz Ana.

“Nós queremos as coisas do nosso jeito? Não, nós queremos encontrar meios em que as comunidades sobrevivam, com muitas alternativas de turismo comunitário, de transição energética com biodigestor, que é uma transição energética”, explica.No dia 15 de julho, a Articulação Povos de Luta, composta por organizações e comunidades da zona costeira do Ceará, lançou a Campanha Estadual Contra Empreendimentos Eólicos “Mar Aberto, Velas Livres”, com um ato público em Fortaleza. A mobilização divulgou uma Carta Aberta a Favor da Pesca Artesanal e está reunindo assinaturas em apoio às reivindicações populares.

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