No dia 23 de dezembro de 2016, o então governador do estado do Paraná, Beto Richa (PSDB), entrou na cabine de uma retroescavadeira, posicionou a máquina diante de um muro e deu início a demolição simbólica da Cadeia Pública de Cascavel. À época, a unidade era conhecida como “Carceragem da Polícia Civil” ou “Cadeião da 15ª Subdivisão Policial” por ser administrada e integrada à delegacia da Polícia Civil no centro da cidade.
Após o gesto, Richa reuniu a imprensa e disse que ali “definitivamente” não haveria “mais a presença de detentos de forma inadequada” e comemorou a transferência dos últimos 103 presos que permaneciam na unidade. Ao todo, 540 pessoas foram remanejadas do local, que tinha à época capacidade para 134 pessoas.
Sete anos após o episódio, a unidade continua funcionando, acumula denúncias de violações de direitos e segue superlotada, revela relatório de inspeção da Defensoria Pública do Paraná realizado em maio de 2023 ao qual a Agência Pública teve acesso. Atualmente, o espaço, com capacidade para 16 detentos, abriga 171 presos – o que corresponde a superlotação de 968,75%.
Com a demolição parcial da cadeia em 2016, a unidade deveria abrigar cartórios, depósito de drogas e apenas algumas celas destinadas a presos provisórios. A reportagem apurou, porém, que há detentos que estão na unidade há pelo menos três meses. No relatório, um dos presos disse à equipe de defensores que estava no local há 59 dias e desde a sua entrada ainda não havia usufruído do direito ao banho de Sol.
De acordo com a Lei de Execuções Penais (LEP), as cadeias públicas destinam-se ao recolhimento de presos provisórios, porém não há um prazo determinado quanto a permanência dos detidos – eles devem aguardar a sentença transitada em julgado e, se condenados, são transferidos para cumprirem a pena numa penitenciária.
A pior entre as piores
A Pública se debruçou sobre os relatórios da Defensoria Pública que denunciam diversas violações à LEP e as Regras de Mandela, tratado da Organização das Nações Unidas que estabelece regras mínimas para o tratamento de presos do qual o Brasil é signatário. Entre janeiro e maio de 2023, a Defensoria fez 15 inspeções em unidades prisionais no estado do Paraná. Destas, 13 estão superlotadas.
Segundo o portal de transparência do Departamento de Polícia Penal (DEPPEN), até junho de 2023 o estado do Paraná tinha a capacidade de 28.211 mil vagas para 35.380 presos – superlotação de 7.169. No Brasil, até dezembro de 2020, havia 477 mil vagas para 648 mil presos – um déficit de 171 mil, mostram os dados da Secretaria Nacional de Política Penais.
A Cadeia Pública de Cascavel foi a que mais chamou a atenção da equipe de defensores e aparece como a pior entre as piores. Por conta da superlotação e da falta de funcionários para dar suporte à inspeção, a equipe não conseguiu fiscalizar a parte interna das celas.
“Rigorosamente, em todas as unidades, a gente pede pros servidores para que desocupem aquele espaço temporariamente para que a gente possa adentrar as celas, ver as condições e em Cascavel era impossível porque nem no pátio iria comportar a quantidade de pessoas que está ali. E eles também não tem contingente de servidores para fazer essa retirada”, explica a defensora Menezes.
A equipe constatou que nas instalações não havia cama ou colchões para todos os presos e mesmo espaço suficiente para colocá-los uma vez que no chão das celas não há mais lugar para os detentos dormirem. A solução encontrada pelos detentos foi improvisar redes com mantas amarradas às grades, e verticalizar as “camas”. Mesmo assim, alguns dormem sentados ou fazem um esquema de revezamento.
Segundo os detentos ouvidos pela defensoria, a alimentação é outra questão. Na avaliação dos presos, a comida fornecida é “ruim e insuficiente”. “Muitos relataram já ter encontrado pedra e cabelo nas marmitas”, consta no relatório.
A equipe constatou ainda a presença de uma pessoa cadeirante que necessitava do auxílio de outros internos para fazer as necessidades fisiológicas porque a unidade não tem banheiro acessível. Há também casos de presos diabéticos sem alimentação e medicamentos adequados.
A maioria dos presos apresentavam tosse, entre outros problemas de saúde. O único medicamento disponível na unidade era o paracetamol. De acordo com o relatório, “as péssimas condições sanitárias do local são vetores de proliferação e contaminação por doenças e evidentemente representam severo risco à saúde das pessoas custodiadas”.
Outro aspecto ressaltado na inspeção foram as condições de higiene. “A gente viu celas urinadas. As paredes são imundas, ninguém passa uma vassoura no local há muito tempo”, diz Menezes. “É inconcebível o cheiro da unidade. Principalmente nessas celas que a gente conseguiu ter mais acesso, que são um pouco mais abertas”, relata.
Segundo a defensora, o espaço vai contra quase todas as determinações do artigo 16 da LEP, que estabelece direitos dos presos, entre eles alimentação suficiente e vestuário, atribuição do trabalho e sua remuneração, proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, assistência material, à saúde, educacional e social. Além da violação do artigo 85 que trata do limite máximo de capacidade do estabelecimento.
“A Cadeia Pública de Cascavel é um dos espaços assim mais horrorosos, se não o mais horroroso hoje que eu vi, apesar de ter visto muita coisa horrível”, afirma a defensora Menezes.
As denúncias foram apresentadas à direção da unidade prisional, à coordenação regional e a direção do Deppen, e ao Ministério Público. A Pública entrou em contato com a direção da Cadeia e solicitou entrevista com o responsável, mas ouviu que “não existe esta possibilidade”. O MP informou em nota que acompanha a situação “já tendo sido adotadas diversas providências em relação ao tema”, sem informar, porém, quais foram essas providências.
Segundo o Deppen, que passou a administrar a unidade em 7 de novembro de 2018, “a nova legislação permite a permanência de condenados na unidade”. Quanto à superlotação e capacidade de presos, informou que a cadeia tem “um fluxo bastante elevado, uma vez que recebe pessoas presas em flagrante ou em cumprimento de mandado, e providencia transferências diárias para outras cidades”.
Em 2014, dois anos antes de Beto Richa anunciar a desativação parcial da unidade, a Defensoria Pública ajuizou uma Ação Civil Pública solicitando o encerramento definitivo da unidade. Os desembargadores integrantes da 5a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por maioria dos votos, negaram o apelo do órgão.
“A gente está buscando, a gente provoca as instituições. Eu espero ainda que as instituições acabem fazendo algo ali em relação a esse fato. Do ponto de vista de atuação judicial a gente já tomou todas as medidas – claro a gente pode ingressar com uma nova Ação Civil Pública, mas depois que uma Ação Civil Pública, em que as condições eram bem parecidas e ela foi julgada improcedente, a gente não tem certeza”, conta Menezes.