Mariangela Hungria, primeira brasileira a conquistar o World Food Prize, simboliza o potencial dos bioinsumos. Contudo, a euforia em torno da “agricultura do futuro” exige um olhar atento sobre a real disseminação desses benefícios e os obstáculos para uma transformação verdadeiramente sistêmica no agronegócio nacional.
O Brasil se encontra no epicentro de uma transformação no agronegócio, alardeada como “revolução neobiológica”. A recente premiação da cientista brasileira Mariangela Hungria com o World Food Prize de 2025, uma honraria equiparada ao “Nobel da Agricultura”, joga holofotes sobre esse movimento. A promessa é sedutora: substituir, ao menos em parte, os controversos fertilizantes químicos por soluções sustentáveis, baseadas em microrganismos que, supostamente, elevam a produtividade enquanto reduzem custos e o fardo ambiental. Bilhões de dólares em economia anual e a mitigação de gases do efeito estufa são cifras frequentemente citadas. Não surpreende que este mercado floresça a uma velocidade quatro vezes maior que o de insumos tradicionais. Contudo, por trás do brilho das conquistas individuais e do otimismo do setor, pairam questionamentos sobre a profundidade e o alcance real dessa virada sustentável.
Mariangela Hungria: um farol de talento em meio a um oceano de necessidades
Com uma sólida formação em agronomia pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, onde também obteve seu mestrado, Mariangela Hungria dedicou mais de quatro décadas ao estudo da microbiologia do solo. Sua atuação na Embrapa Soja e como membro da Academia Brasileira de Ciências culminou no anúncio, em 13 de maio de 2025, de sua vitória no World Food Prize. Um feito inédito para uma mulher brasileira. “Substituir o uso de produtos químicos por produtos biológicos na agricultura tem sido a luta da minha vida. Tenho muito orgulho de contribuir para a produção de alimentos e, ao mesmo tempo, diminuir o impacto ambiental”, afirmou ela. Suas palavras ecoam um ideal nobre.
O prêmio, idealizado por Norman E. Borlaug, figura central da Revolução Verde, e estabelecido em 1986, visa reconhecer contribuições para a segurança alimentar global. Outros brasileiros, como Edson Lobato, Alysson Paulinelli e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, já foram laureados. Mariangela receberá US$ 500 mil e uma escultura em cerimônia marcada para 23 de outubro nos Estados Unidos. Sua trajetória é, sem dúvida, notável e um motivo de orgulho. No entanto, é crucial que o reconhecimento de talentos individuais não obscureça a necessidade de investimentos mais amplos e contínuos em ciência e tecnologia de base, para além de figuras de destaque, e que se questione se a infraestrutura de pesquisa e desenvolvimento no país está à altura dos desafios.
Para entender melhor: a complexa engrenagem da revolução neobiológica
A aclamada revolução neobiológica propõe o uso de organismos vivos – principalmente bactérias e fungos – para otimizar a agricultura. Diferencia-se da “revolução verde” clássica, maciçamente dependente de químicos, ao priorizar processos biológicos. No cerne dessa abordagem está a fixação biológica de nitrogênio (FBN), especialidade de Hungria. Bactérias associadas às raízes capturam nitrogênio atmosférico, convertendo-o em nutriente para as plantas. Com isso, em tese, reduz-se drasticamente a dependência de fertilizantes nitrogenados sintéticos, cuja produção é energética e ambientalmente custosa.
O trabalho de Mariangela segue os passos de Johanna Döbereiner, outra cientista notável que desbravou o campo da FBN em leguminosas e cana-de-açúcar. As pesquisas de Hungria com inoculantes biológicos foram fundamentais para a cultura da soja no Brasil, permitindo, em muitos casos, dispensar fertilizantes amoniacais. Resta saber, contudo, a velocidade e a escala com que essa substituição poderá, de fato, ocorrer em um país de dimensões continentais e com uma agricultura tão diversa e, por vezes, resistente a mudanças estruturais profundas. Será que essa revolução é acessível a todos os produtores ou permanece um privilégio dos mais capitalizados?
Entre a economia alardeada e as questões socioambientais
Os números apresentados sobre os benefícios econômicos e ambientais são, à primeira vista, animadores. Uma economia anual estimada em 25 bilhões de dólares em fertilizantes e a não emissão de mais de 230 milhões de toneladas de CO₂ são argumentos poderosos. A FBN na soja é o exemplo mais citado, adotada em quase toda a área plantada. Um valor expressivo, sem dúvida, mas que levanta a questão: essa economia se reflete proporcionalmente no bolso do pequeno e médio agricultor, ou beneficia majoritariamente os grandes conglomerados do agro?
Além disso, enquanto a redução de CO₂ é bem-vinda, será ela suficiente para contrabalançar outros impactos ambientais da expansão agrícola, como o desmatamento, a compactação do solo e o uso intensivo de água, muitas vezes associados ao próprio agronegócio que agora adota os bioinsumos? Como destacou Marcello Brito, da FDC Agroambiental: “O modelo de agricultura que desenvolvemos nas últimas três décadas no mundo trouxe um saldo de degradação… Precisamos de um novo salto”. A questão é se os bioinsumos, por si sós, representam esse salto completo ou apenas uma peça em um quebra-cabeça muito maior e mais complexo, que envolve questões fundiárias, sociais e de modelo de desenvolvimento. As pesquisas de Hungria, estendidas a feijão, milho e trigo, ampliam o escopo, mas a crítica reside na profundidade da mudança que representam frente aos desafios sistêmicos.
BOX INFORMATIVO: Bioinsumos – A promessa e seus “mas”
- O que são? Produtos de organismos vivos (bactérias, fungos) ou substâncias naturais, ou processos biotecnológicos, para nutrição, controle de pragas, estímulo vegetal e melhoria do solo.
- A promessa: Alternativa sustentável aos químicos, reduzindo impacto ambiental, melhorando alimentos e, potencialmente, custos.
- Os “mas”:
- Acessibilidade: O custo e a tecnologia são viáveis para todos os portes de produtores?
- Eficácia em larga escala: Funcionam em todas as condições e culturas com a mesma eficiência que os químicos consolidados?
- Regulamentação e controle de qualidade: O rápido crescimento do mercado garante produtos seguros e eficazes?
- Solução completa ou paliativo? Resolvem problemas pontuais ou atacam as causas da degradação e da dependência química na agricultura?
O mercado de bioinsumos: crescimento exponencial e suas interrogações
O setor de inoculantes biológicos, segundo a ANPII, cresceu em média 16,4% ao ano desde 2020, faturando R$ 441 milhões em 2023. O mercado mais amplo de bioinsumos atingiu R$ 5 bilhões na safra 2023/2024, com crescimento médio anual de 21% nos últimos três anos – um ritmo quatro vezes superior à média global. O Brasil projeta alcançar 59% do market share latino-americano até 2029. Números que impressionam, mas que também acendem um alerta: esse crescimento acelerado está acompanhado de um controle de qualidade rigoroso e de mecanismos que evitem a concentração de mercado nas mãos de poucas empresas? Garante-se o acesso a essas tecnologias para todos os perfis de produtores, ou estamos criando uma nova forma de dependência tecnológica? A soja ainda domina (55%), seguida por milho (27%) e cana (12%), o que reflete o sucesso inicial, mas também uma concentração em commodities.
Avanços tecnológicos: inovação acelerada ou corrida desenfreada?
O desenvolvimento de novos produtos, como o bioinsumo Combio (Embrapa/Innova Agrotecnologia), que combina três estirpes bacterianas, ilustra a busca por soluções mais eficazes. Embora os inoculantes com Bradyrhizobium ainda liderem (57,4% das vendas em 2022), novas categorias ganham espaço. Nos últimos 20 anos, 433 produtos biológicos foram registrados no Brasil, superando os defensivos químicos. Um dado positivo, mas que precisa ser analisado com cautela. A velocidade dos registros garante a eficácia e segurança de todos esses novos produtos a longo prazo, especialmente considerando a complexidade dos ecossistemas agrícolas? E o acesso a essa inovação, como se distribui pelo setor? O recorde de 96 registros em 2020 é um sinal de dinamismo ou de uma possível flexibilização excessiva nos critérios de aprovação?
Marco regulatório e perspectivas: a lei é suficiente para guiar a revolução?
A Lei nº 15.070/2024, que estabelece diretrizes para o setor de bioinsumos, é apresentada como um avanço. Ela amplia a definição de bioinsumos e centraliza o registro no MAPA, com consultas à Anvisa e Ibama. Este ambiente regulatório, teoricamente favorável, combinado com o interesse do mercado, sustenta projeções otimistas da CropLife Brasil. Contudo, resta acompanhar se sua implementação será ágil e eficaz, e se realmente “destravará os recursos”, como espera Marcello Brito, ou se criará novas camadas de burocracia que podem, paradoxalmente, dificultar o avanço para os menos capitalizados. A visão de Brito sobre a necessidade de “uma gestão pública que destrave os recursos… e de mais pesquisas” é pertinente. A questão é se a nova lei, por si só, garante essa gestão e esse investimento de forma equitativa e focada nos gargalos mais críticos.
Entre o otimismo da vanguarda e a necessidade de um ceticismo construtivo
O prêmio a Mariangela Hungria é um reconhecimento merecido e um símbolo do potencial científico brasileiro na área agrícola. A revolução neobiológica oferece, sem dúvida, uma alternativa mais palatável ao modelo químico-intensivo. O Brasil, ao explorar seus recursos biológicos, parece encontrar um caminho promissor. O trabalho de cientistas como Döbereiner e Hungria é inestimável.
Entretanto, é preciso temperar o otimismo com uma dose de realismo crítico. O mercado em expansão e o arcabouço legal são peças importantes, mas a consolidação do Brasil como líder em uma agricultura verdadeiramente sustentável exige mais do que avanços tecnológicos pontuais. A mensagem de Hungria sobre “produzir mais com menos” é poderosa, mas sua materialização plena depende de superar desafios estruturais, garantir que os benefícios dessa revolução sejam democratizados e que a sustentabilidade apregoada não seja apenas uma nova roupagem para velhas práticas de concentração de renda e poder no campo. A verdadeira revolução no campo exigirá um olhar crítico e contínuo sobre seus próprios processos, garantindo que os benefícios sejam amplos e que a sustentabilidade seja, de fato, a regra, e não a exceção conveniente para alguns.
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