Pesquisar
Close this search box.

Base alimentar dos indígenas do Oiapoque, mandioca é ameaçada por pragas no Amapá

Base alimentar dos indígenas do Oiapoque, mandioca é ameaçada por pragas no Amapá

A mandioca é a base da vida dos indígenas do município de Oiapoque, o ponto mais ao norte do Brasil, no estado do Amapá. Os povos Karipuna, Palikur-Arukwayene, Galibi Marworno e Galibi Kali’na, habitantes da região, utilizam a planta para produzir a farinha, que representa a fonte mais importante de alimentação e renda para as famílias. O tubérculo também vira o caxixi, bebida fermentada imprescindível à festa tradicional do Turé, realizada todos os anos em agradecimento aos espíritos pelo alimento e cura de doenças.

Esse sistema, no entanto, está ameaçado por fatores que podem estar relacionados às mudanças no clima e no regime de chuvas da região, relatam lideranças e especialistas. Desde o início do ano, fungos e possivelmente uma bactéria têm se proliferado e atacado as roças de mandioca em parte das 66 aldeias ocupadas pelos cerca de 10 mil indígenas dos quatro povos nas terras indígenas Uaçá, Juminã e Galibi. 

Roça de mandioca atingida por pragas na Terra Indígena Juminã, no Oiapoque. Imagem mostra chão de terra marrom e seco com restos de plantas
Roça de mandioca atingida por pragas na Terra Indígena Juminã, no Oiapoque

Edmilson dos Santos Oliveira, coordenador do Conselho dos Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque (CCPIO), estima que aproximadamente 80% das plantações de mandioca tenham sido perdidas devido ao problema. Com isso, as comunidades que antes abasteciam o Oiapoque com a farinha produzida em suas roças agora estão em situação de insegurança alimentar e econômica.

“Da mandioca, tiramos vários derivados: farinha, goma, tucupi. Tudo isso é muito vendável aqui no Oiapoque. Até mesmo na Guiana Francesa [país que faz fronteira com o município] a gente vinha vendendo farinha. Hoje, somos nós que estamos comprando farinha que vem do Pará, farinha de fora para levar para as aldeias”, conta Oliveira. 

“Muitas famílias já estão passando fome, comendo só peixe ou tomando açaí. Não estamos acostumados, às vezes pode não ter a carne, não ter o peixe, mas tendo a farinha a gente faz o mingau, faz o chibé [espécie de papa à base de farinha e água]. São alimentos tradicionais para nós”, afirma.

Mulher indígena fala ao microfone durante Assembleia Geral dos Povos do Oiapoque, ocorrida em março de 2023
Na Assembleia Geral dos Povos do Oiapoque, ocorrida em março, liderança indígena cobra apoio do governo do Amapá para enfrentar a crise das roças de mandioca nas aldeias

A gravidade da situação fez com que o governo do Amapá decretasse, no dia 20 de julho, situação de emergência em todo o estado para combater os “problemas fitossanitários” provocados por patógenos que têm “afetado a cultura de mandioca em parte significativa do território”. 

O governo estadual prometeu a entrega de cestas básicas para ajudar na subsistência das comunidades, já que muitas famílias não têm dinheiro para comprar a farinha produzida em outros lugares, de acordo com as lideranças indígenas. A distribuição, entretanto, ainda não começou. 

A Agência Pública enviou ao governo amapaense perguntas sobre o assunto, mas não recebeu retorno até o fechamento do texto. Questionamos também a prefeitura de Oiapoque em relação às medidas tomadas para enfrentar a situação, porém tampouco obtivemos resposta.

A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) informou à reportagem que elabora um plano de trabalho para fornecer farinha de mandioca a ser comprada pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e entregue mensalmente a 1.800 famílias pelo período de 15 meses. 

Análises laboratoriais da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) do Amapá apontaram a presença de três tipos de fungos nas roças indígenas que causam o murchamento das plantas e a degradação de seus ramos aéreos. Se a infestação dos fungos for severa, eles podem matar as plantas, mas os pesquisadores que estão investigando a situação imaginam que algo mais possa estar acontecendo. 

O engenheiro agrônomo Adilson Lopes Lima, um dos responsáveis pelas avaliações, explica que os pés de mandioca têm morrido depois de apresentar sintomas como o amarelamento e deformação das folhas e o surgimento exagerado de hastes a partir do caule principal. 

Essas manifestações são compatíveis com uma doença conhecida como superbrotamento, que parece ainda mais prejudicial para as roças, pois se desenvolve mais rápido até do que os fungos. Os técnicos da Embrapa buscam agora, por meio de exame molecular, confirmar se a bactéria causadora do superbrotamento de fato atinge as plantações. 

A presença desses patógenos no solo do Oiapoque ocorre há alguns anos de forma pontual, conforme relatos dos indígenas. Porém, no último ano, houve uma explosão na infestação. Lideranças e especialistas associam o problema às transformações do clima e dos períodos de chuva que vêm ocorrendo na região.

“É notável que o regime de chuvas, a cada ano que passa, está se alterando. Há anos em que chove mais que o esperado. O início do período chuvoso atrasa ou adianta. Está cada vez mais inconstante, e isso impacta diretamente na atividade da roça, pois o cultivo coincide com o começo das chuvas [que ocorre geralmente entre novembro e dezembro]”, explica Claudiane de Menezes Ramos, doutora em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade da Amazônia e professora da Universidade Federal do Amapá (Unifap).

Todos os anos, os indígenas realizam a queima do terreno da roça antes de iniciar o plantio. Essa etapa é importante para fertilizar o solo a partir das cinzas e fazer o controle dos microorganismos que estão na camada superficial da terra. Normalmente, a queima acontece de setembro a outubro, durante o verão amapaense, quando o clima está seco. 

Mas há pelo menos três anos, de acordo com o cacique Oliveira, essa prática tradicional está comprometida. “Quando chega setembro, outubro, já começa a chover, e acabamos não queimando. Ou às vezes quando queimamos é [em um clima] misturado, uma semana com sol e uma com chuva. Aí esperamos o momento em que dá aquela secada e queimamos, mas não fica uma queima perfeita, a terra fica um pouco crua, como a gente chama”, diz. “Acreditamos que isso contribuiu para que essas pragas começassem a atingir nossas plantações.” 

Em 2022, houve episódios de chuva intensos na região justamente na época em que as roças deveriam ter sido queimadas, o que dificultou ainda mais a situação. Ainda não foram conduzidos estudos que comprovem cientificamente as percepções indígenas, mas Adilson Lopes Lima concorda que as fortes chuvas podem ter influenciado o quadro atual.

“Como choveu muito e não queimaram bem as roças, elas não foram bem fertilizadas, e com isso as plantas ficaram menos vigorosas. Planta é como a gente: quando não estamos tão fortes, facilmente contraímos doenças. Também não foi queimada a camada superficial do solo onde ficam esses microorganismos fitopatogênicos, e sua população aumentou muito”, aponta.

Indígena colhe mandioca em plantação na floresta
Lideranças relacionam infestação a mudanças no clima e regime de chuvas

A Embrapa está desenvolvendo uma plantação de cerca de 5 hectares de mandiocas livres de doenças para transportar posteriormente às aldeias. Mas, além de serem insuficientes para suprir a demanda das comunidades, elas não são resistentes à bactéria que provoca o superbrotamento. De acordo com Lima, não há no Brasil uma variedade desse tipo. Porém, os sintomas compatíveis à doença são o principal problema a atingir as plantações.

Além disso, como ainda não se conhece o vetor que está deixando as plantas doentes – não há certeza ainda se trata-se mesmo de superbrotamento –, o pesquisador projeta que a crise fitossanitária nas terras indígenas do Oiapoque levará tempo até ser resolvida.

Às comunidades indígenas, resta a tentativa de adaptação a essa nova realidade. Algumas têm recorrido ao cultivo de alimentos que não são tradicionais de sua cultura, como arroz e feijão. Outras dependem agora exclusivamente da renda obtida pela venda de artesanatos e de benefícios sociais como o Bolsa Família. 

“Não é muito, mas dá para comprar farinha da cidade. Não é a farinha boa que a gente gosta de fazer e comer, mas é a única solução que temos para sobreviver”, relata o agente ambiental indígena Gilmar Nunes André, do povo Galibi Marworno e morador da Terra Indígena Juminã. 

Sem mandioca, sem Turé

A dança do Turé, pela qual os povos do Oiapoque são conhecidos, também está ameaçada pelo colapso das roças de mandioca. A festa, antigamente liderada pelos pajés, é realizada todos os anos por algumas comunidades para agradecer aos espíritos Karuaña pela colheita, pesca, caça e cura de doenças nas comunidades durante o ano anterior. 

Alguns elementos são fundamentais para que o Turé aconteça. Os instrumentos de sopro, como a flauta, responsáveis por produzir as músicas que conduzem a celebração. Os mastros que ficam ao centro do local onde se dão as danças. Os ornamentos corporais, como colares, enfeites dorsais e coroas de penas. E também o caxixi, a bebida fermentada à base de mandioca consumida pelos adultos. “Se não tiver caxixi, não tem a festa”, destaca o cacique Oliveira. Ele diz que, pelo menos neste ano, algumas aldeias devem desistir de realizar a dança do Turé.

Indígenas durante festa tradicional do Turé. Na imagem é possível ver dezenas de indígenas, homens, mulheres e crianças, de mãos dadas em um círculo. Eles vestem roupas vermelhas e adereços tradicionais
Festa tradicional do Turé está ameaçada pelo colapso das roças: celebração não acontece sem o caxixi, bebida fermentada à base de mandioca

A antropóloga Rita Lewkowicz, da ONG Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), que trabalha com os povos do Oiapoque, explica que os Karuãna são seres auxiliares dos pajés nas suas curas. “Também cuidam dos lugares sagrados do território e são ‘mestres’ ou ‘donos’ espirituais das espécies de animais”, diz. “O Turé é uma forma de manter as relações equilibradas entre os indígenas e os outros seres que vivem no território”. 

Ainda segundo Lewkowicz, a não realização da festa pode trazer desarmonia a essas relações, o que tem o potencial de provocar prejuízos espirituais aos povos indígenas.

Além da crise das roças, a ameaça do petróleo

Lewkowicz destaca que a crise nas roças de mandioca vêm no mesmo momento em que os indígenas do Oiapoque enfrentam outro fator de pressão sobre seus territórios: os planos de exploração de petróleo pela Petrobras na bacia sedimentar da Foz do Amazonas, no litoral do Amapá. 

A estatal tenta obter licenças para perfuração de poços junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) – um dos pedidos foi negado pela autarquia em maio. Caso as autorizações sejam concedidas, a base da atividade será estabelecida justamente em Oiapoque. 

Margem da cidade de Oiapoque com casas de palafita e barcos no rio
Exploração de petróleo na foz do Amazonas também assombra indígenas do Oiapoque

Embora afetados pelo tráfego intenso de aeronaves e veículos da Petrobras que já ocorria no entorno de seus territórios e pelo inchaço populacional que deve acontecer no município com o início da exploração, os indígenas não foram consultados durante os processos de licenciamento, que já se arrastam há nove anos. Apenas em fevereiro conseguiram uma primeira reunião com a empresa.

“Além de serem duas grandes ameaças aos modos de vida e subsistência dos povos indígenas do Oiapoque, a exploração de petróleo só irá contribuir para o agravamento das mudanças climáticas, para que novas crises da roça ocorram no Oiapoque e em outras regiões, e que as populações mais vulneráveis, cuja vida está diretamente interligada ao território, estejam cada vez mais expostas”, argumenta a antropóloga.

MAIS NOTÍCIAS

CATEGORIAS

.

SIGA-NOS