Interesses corporativos e um passado mal resolvido se encontram no prato, minando a saúde pública, o ambiente e a soberania alimentar no sul global.
Imagine um gigante agrícola, capaz de alimentar o mundo, mas onde milhões acordam sem a certeza do pão na mesa. Este é o Brasil de hoje, um país onde o poder do lobby dos alimentos ultraprocessados se entrelaça com uma herança colonial persistente, ditando não apenas o que comemos, mas quem continua faminto e por quê. Uma teia complexa de influência política e estratégias de mercado que, sutilmente, reforça antigas estruturas de dominação, com consequências devastadoras para o meio ambiente, a saúde e a justiça social.
Raízes amargas, pratos vazios
A fome no Brasil não é um fantasma recente; é uma companheira de longa data. Já nos anos 1940, Josué de Castro alertava que suas causas eram mais profundas do que se imaginava. Ele desafiou a ideia de que o problema era excesso de gente, apontando para um modelo de desenvolvimento com raízes fincadas no colonialismo. Essa perspectiva, conhecida como “colonialidade alimentar”, refere-se aos processos históricos e atuais pelos quais sistemas alimentares, práticas agrícolas e hábitos dietéticos foram moldados por legados coloniais, perpetuando desigualdades e apagamento cultural. Os sistemas alimentares indígenas e africanos foram sistematicamente desmantelados pelos colonizadores europeus. A imposição de monoculturas, como a cana-de-açúcar, a exploração de recursos naturais e a introdução de cultivos e animais estrangeiros pavimentaram o caminho para um sistema focado na exportação, em detrimento da subsistência local e das práticas culturais. Essa trajetória histórica impactou duradouramente a soberania alimentar do país e a resiliência dos sistemas alimentares tradicionais. A promoção da agricultura industrializada, especialmente durante a Revolução Verde, aprofundou ainda mais essas estruturas coloniais, degradando sistemas agrícolas biodiversos criados por povos indígenas e africanos.
O modelo agroexportador e seus custos socioambientais
E o que dizer do agronegócio? Esse gigante da nossa economia, focado em grandes monoculturas para exportação, acaba por perpetuar essa lógica. A produção massiva de grãos para ração animal, em vez de para consumo humano direto, é um exemplo gritante. Exportamos carne e, com ela, quantidades imensas de água virtual, enquanto os impactos ambientais ficam por aqui. O predomínio de monoculturas como soja e cana-de-açúcar tem levado a desmatamento extenso, degradação do solo e poluição da água. Essas práticas, frequentemente impulsionadas por demandas de exportação e interesses do agronegócio, priorizaram o ganho econômico em detrimento da sustentabilidade ambiental e da segurança alimentar local. A expansão da produção de agrocombustíveis, especialmente o etanol de cana, também contribuiu para reconfigurações territoriais e o deslocamento de pequenos agricultores e comunidades indígenas. Este processo está ligado à lógica da colonialidade, onde a natureza é mercantilizada e as populações locais são marginalizadas. Além disso, a dependência de agroquímicos e culturas transgênicas exacerbou a degradação ambiental, entrincheirando ainda mais a colonialidade da natureza.
A desigualdade semeada no campo
A colonialidade alimentar no Brasil perpetuou desigualdades sociais, particularmente em áreas rurais. A concentração da posse da terra, um legado do colonialismo, limitou o acesso à terra para pequenos agricultores, povos indígenas e comunidades quilombolas. Comunidades indígenas e afrodescendentes enfrentaram o apagamento cultural, à medida que suas práticas alimentares e conhecimentos foram desvalorizados em favor de sistemas alimentares industrializados e padronizados. Isso levou a uma perda de identidade cultural e autonomia sobre a produção e consumo de alimentos.
O peso da indústria no congresso
É nesse terreno fértil de desigualdades históricas que a indústria de alimentos ultraprocessados fincou suas garras. Com um poder de lobby impressionante, esse setor mobiliza rios de dinheiro para defender seus interesses, muitas vezes em detrimento da saúde pública. A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA), que congrega gigantes como Nestlé e McDonald’s, é a principal porta-voz dessa força. Mas não está sozinha; associações setoriais de chocolates, biscoitos e refrigerantes também exercem pressão considerável.
Dinheiro e influência nas decisões políticas
A influência vai além de corredores e gabinetes. Em 2014, por exemplo, impressionantes 57% dos deputados federais e 48% dos senadores eleitos receberam financiamento do setor alimentício. Essa rede de contatos facilita, e muito, a vida da indústria na hora de barrar ou moldar políticas. Durante a reforma tributária (2023-2025), a estratégia foi clara: evitar impostos maiores sobre seus produtos e, se possível, abocanhar um lugar na cesta básica com isenção total. O chamado “imposto do pecado”, pensado para taxar itens nocivos à saúde, virou alvo de uma campanha sistemática para livrar os ultraprocessados. Uma tática foi propor leis específicas para cada tipo de produto, buscando fragmentar e atrasar qualquer regulamentação mais ampla.
Aliados estratégicos e o discurso contra a ciência
A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), com seus 374 congressistas, tornou-se uma aliada de peso nessa empreitada. Pode parecer estranho, mas os interesses convergem, já que o agro fornece a matéria-prima para muitos desses produtos industrializados. A FPA chega a usar material técnico fornecido pela própria ABIA para orientar seus parlamentares a questionar a validade científica do termo “ultraprocessado”. Como disse o deputado federal Joaquim Passarinho (PL-PA), ao defender que “ultraprocessado não quer dizer que é totalmente ruim”, uma fala que ignora um caminhão de evidências científicas.
O acesso ao governo federal também é, digamos, privilegiado. Entre janeiro e outubro de 2023, em plena discussão da reforma tributária, representantes da indústria alimentícia tiveram nada menos que 103 reuniões com o primeiro escalão do governo. É quase cinco vezes mais do que as organizações da sociedade civil conseguiram no mesmo período. Uma disparidade que, convenhamos, fala por si.
Duas medidas, um padrão global
A tática de vender gato por lebre não é exclusividade brasileira. Grandes corporações alimentícias adotam uma espécie de “dupla moralidade”, comercializando produtos com formulações diferentes – e piores – em países do Sul Global. Um estudo da Proteste revelou que produtos idênticos, do mesmo fabricante, são vendidos no Brasil com aditivos nocivos que não constam nas versões europeias.
O caso Nestlé e a fórmula para o Sul Global
A Nestlé é um caso emblemático. A gigante suíça adiciona mais açúcar e mel em leites e cereais infantis vendidos na África, Ásia e América Latina, enquanto na Europa esses mesmos produtos têm fórmulas sem adição de açúcar. No Brasil, país que é o segundo maior mercado do Mucilon, três quartos dos cereais infantis da marca contêm açúcar adicionado, numa média de três gramas por porção. Isso vai na contramão das recomendações do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS) para crianças menores de dois anos. Um cientista da OMS classificou essa prática como um “duplo padrão injustificável”. A desculpa da indústria? Executivos da Nestlé já chegaram a dizer que a obesidade é uma “consequência inesperada” de seus esforços para combater a fome mundial, um argumento que pesquisadores classificam como “o mais desonesto”, já que não há evidências de que ultraprocessados tenham resolvido a fome em lugar algum.
Leis frouxas, um prato cheio para a indústria
Essa realidade é facilitada por uma legislação brasileira considerada frágil e desatualizada, que ainda permite aditivos perigosos já banidos em outros cantos. E o nosso sistema tributário, com diretrizes dos anos 1970, acaba favorecendo esses produtos. O Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014, é super moderno ao recomendar evitar ultraprocessados, mas a política fiscal rema contra, chegando ao cúmulo de incluir macarrão instantâneo e salsicha na cesta básica de alguns estados, com direito a benefício fiscal. Enquanto isso, 98,8% dos ultraprocessados nos supermercados brasileiros contêm ingredientes nocivos.
A fatura chega: saúde e identidade em xeque
O Sul Global, que inclui América Latina, África e partes da Ásia, tornou-se o mercado da vez para os ultraprocessados. As vendas cresceram mais de 50% entre 2000 e 2013 nessa região. O crescimento mundial no consumo foi de 43,7% no mesmo período, mas disparou 114,9% na Ásia e Pacífico e 48% na América Latina. No Brasil, o consumo aumentou em média 5,5% entre 2008 e 2017, atingindo principalmente populações que antes consumiam menos: negros, indígenas, moradores de áreas rurais e das regiões Norte e Nordeste.
Doenças no cardápio do Sul e o impacto nos mais vulneráveis
A conta dessa “modernização” alimentar é salgada. Além das mortes e doenças já mencionadas, o consumo desses produtos está ligado a um risco 50% maior de morte por doenças cardiovasculares e 12% maior de diabetes tipo 2. Essa transição nutricional tem sido particularmente devastadora em comunidades indígenas e quilombolas, onde dietas tradicionais foram substituídas por alimentos processados e ultraprocessados. Nas comunidades Kaingang e Guarani, por exemplo, a adoção de dietas ocidentalizadas levou a um declínio na segurança alimentar e a um aumento da desnutrição. Da mesma forma, em comunidades quilombolas, a prevalência de desnutrição infantil é significativamente maior do que em populações não quilombolas, destacando o impacto desproporcional da colonialidade alimentar em grupos marginalizados. A perda de biodiversidade nos sistemas alimentares também comprometeu a diversidade nutricional.
Sementes de esperança: resistência e alternativas
Apesar de tudo, há luz no fim do túnel e focos de resistência. A agroecologia surgiu como uma alternativa chave, promovendo biodiversidade, soberania alimentar local e práticas agrícolas sustentáveis. Na Zona da Mata de Minas Gerais, agricultores agroecológicos resistiram à pressão para adotar práticas agrícolas industrializadas, incorporando sua ancestralidade e conhecimento tradicional. Comunidades indígenas, como os Puyanawa, têm buscado preservar sua agrobiodiversidade e sistemas alimentares tradicionais. Comunidades quilombolas também se engajaram na resistência através da promoção de sistemas alimentares locais e da recuperação de práticas alimentares tradicionais. Iniciativas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) buscam incorporar alimentos locais e tradicionais nas merendas escolares, embora desafios permaneçam.
Experiências no México, Chile e África do Sul mostram que taxar bebidas açucaradas e adotar rótulos de advertência claros nas embalagens funciona para reduzir o consumo e até incentivar a indústria a reformular seus produtos para versões mais saudáveis. No Chile, por exemplo, octógonos pretos alertam sobre excesso de açúcar, sódio e gorduras. E a população parece apoiar: uma pesquisa Datafolha de 2023 mostrou que 94% dos brasileiros são a favor de taxar produtos nocivos à saúde.
Plantando autonomia: a resposta decolonial na mesa brasileira
Mas nem tudo é terra arrasada. No Brasil profundo, e também nas cidades, um movimento silencioso e potente busca reescrever essa história: a decolonialidade alimentar. Este conceito propõe desconstruir os padrões alimentares impostos pelo colonialismo, promovendo o resgate e a valorização das práticas alimentares tradicionais das comunidades marginalizadas. A ideia central é dar valor aos alimentos do território local e aos saberes dos povos originários, que foram suprimidos junto com suas culturas durante a colonização. Essa interferência colonial não definiu apenas o que comer, mas também como comer, influenciando até os utensílios.
Descolonizando o saber e o sabor
O pensamento decolonial convida a um “giro”, um desprendimento da modernidade e seu lado obscuro, a colonialidade, que está na raiz das iniquidades alimentares e da concentração de poder. Os mecanismos dessa colonialidade alimentar, explica a professora Rute, incluem o acúmulo de capital, o controle dos meios de produção, a exploração da natureza e das pessoas, a padronização dos gostos e a hierarquização dos sistemas alimentares. Isso se reflete na agricultura de grandes latifúndios monocultores, no uso de agrotóxicos e na transformação da comida em mera mercadoria.
O espelho distorcido da nossa mesa
Hoje, o Brasil, apesar de sua imensa variedade de alimentos nativos, não os valoriza como deveria, incentivando a importação, a padronização e o plantio de commodities para exportação. Os três produtos agrícolas mais cultivados aqui – cana-de-açúcar, soja e milho – são monoculturas voltadas ao mercado externo. Em 2022, o país colheu 724,4 milhões de toneladas de cana e 120,7 milhões de toneladas de soja, enquanto a produção de mandioca, um alimento genuinamente nacional, foi de apenas 17,6 milhões de toneladas. Grande parte desses grãos vira ração animal ou insumo para alimentos ultraprocessados, evidenciando o descaso com nossa biodiversidade alimentar. Não surpreende que, segundo a FAO em 2022, 70,3 milhões de brasileiros enfrentaram insegurança alimentar, um reflexo das desigualdades estruturais herdadas do período colonial.
Saberes ancestrais, futuros possíveis na resistência
Felizmente, a resistência floresce. Movimentos sociais agroecológicos, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), promovem a agroecologia em assentamentos e cooperativas. A 5ª Feira Nacional da Reforma Agrária, em maio de 2025, em São Paulo, com suas 580 toneladas de alimentos e 1.920 tipos de produtos de assentamentos, foi uma prova viva disso. Nas terras quilombolas, a agroecologia é prática comum, centrada na preservação da natureza e na segurança alimentar, utilizando o que a terra oferece, com pouco ou nenhum fertilizante. Para essas comunidades, conhecer cada pedaço de terra pelo nome carrega o peso de uma história ancestral. A valorização das Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) também é uma estratégia vital, resgatando espécies resilientes e ricas que o agronegócio tentou apagar, e despertando autonomia e ancestralidade.
Políticas públicas e o desafio da soberania alimentar
Instrumentos institucionais como o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que determina que no mínimo 30% dos recursos para merenda venham da agricultura familiar, são importantes, mas enfrentam desafios. A soberania alimentar, o direito dos povos de definir suas próprias políticas alimentares, é o grande objetivo. Seus pilares incluem foco nas pessoas, valorização dos produtores, sistemas alimentares localizados e respeito ao meio ambiente. Contudo, a financeirização do capital e o hiperconsumo são barreiras, e o enfraquecimento de órgãos como o CONSEA, que foi extinto, representou um duro golpe. Apesar disso, conferências populares e a busca por fortalecer os sistemas alimentares locais baseados na agroecologia seguem como faróis de esperança. A decolonialidade alimentar, afinal, é um projeto político-cultural que busca resgatar autonomia e promover justiça socioambiental através do que comemos.
A questão que fica é se teremos força política para romper com essa lógica que prioriza o lucro de poucos em detrimento da saúde de muitos e da soberania alimentar de uma nação inteira. Decolonizar o prato, como alguns propõem, valorizando o conhecimento e os direitos das comunidades indígenas, afrodescendentes e de pequenos agricultores, é um passo fundamental para um Brasil verdadeiramente independente e para construir um sistema alimentar mais justo e sustentável para todos. Afinal, o que colocamos na mesa diz muito sobre quem somos e, principalmente, quem queremos ser.
Descomplicando o papo:
- Lobby: Sabe quando um grupo de empresas grandes tenta convencer os políticos a criar leis que ajudam essas empresas a lucrar mais? Isso é o lobby. Muitas vezes, o que é bom para essas empresas não é bom pra saúde ou pro bolso do povo.
- Alimentos Ultraprocessados: São aquelas comidas que vêm prontas em pacotinhos e caixinhas, cheias de nomes esquisitos na lista de ingredientes. Pense em salgadinhos, bolachas recheadas, macarrão que fica pronto em 3 minutos, refrigerante e comida congelada de mercado. São feitos na fábrica com muita química pra durar mais e ter um gosto que vicia, mas podem fazer mal pra saúde se a gente come demais.
- Colonialidade Alimentar: Antigamente, quando o Brasil era colônia de Portugal, os portugueses mandavam no que a gente plantava e comia aqui. A “colonialidade alimentar” é como se essa mania de mandar e de valorizar mais a comida e o jeito de comer de fora continuasse até hoje, fazendo a gente esquecer da nossa comida da terra e das nossas tradições.
- Decolonialidade Alimentar: É a luta pra gente se livrar dessa “colonialidade”. É valorizar e resgatar a nossa comida de verdade, o nosso jeito de plantar e cozinhar, os alimentos da nossa terra que nossos avós conheciam e que são mais saudáveis.
- Soberania Alimentar: Significa que o povo tem o direito de escolher o que plantar, como plantar e o que vai comer, sem depender dos outros ou de empresas grandes. É poder ter comida boa e da nossa cultura na mesa de todo mundo, cuidando da natureza.
- Agronegócio: São as fazendas gigantes e as grandes empresas que plantam uma coisa só (como soja, milho ou cana) em áreas enormes de terra. Muito dessa produção vai pra fora do Brasil ou vira ração pra bicho, e muitas vezes usa veneno nas plantações.
- Monocultura: É quando se planta uma única espécie de planta numa área de terra muito grande, ano após ano. Diferente do tempo dos nossos avós, que plantavam um pouco de tudo junto: feijão, milho, mandioca, frutas e verduras.
- Agroecologia: É um jeito de plantar alimentos que respeita a natureza, como se fosse um jardim grande e variado. Não usa venenos, ajuda a terra a ficar forte e dá comida mais saudável pra gente.
- PANC (Plantas Alimentícias Não Convencionais): São aquelas plantas que muita gente não conhece como comida, mas que são nutritivas e gostosas. Podem ser folhas, frutos, flores ou raízes que nascem até no quintal e que antigamente o povo comia muito. Resgatar as PANC ajuda a gente a ter uma alimentação mais rica e variada e valoriza o que é local.
- CONSEA / SISAN / PNAE: São nomes de programas e conselhos do governo criados para tentar melhorar a alimentação do povo. O CONSEA (que foi extinto mas tem gente lutando pela volta) ajudava a pensar as leis de comida. O SISAN tenta organizar as ações pra ninguém passar fome. E o PNAE cuida da merenda das escolas, tentando garantir comida boa e da agricultura familiar pros estudantes.
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