A Avenida Presidente Vargas é uma das mais movimentadas do centro do Rio de Janeiro. Bem no começo da via, uma grande igreja toma conta da paisagem e é impossível não ser notada. Na manhã desta segunda-feira (24), enquanto carros e ônibus contornavam a praça onde fica a Igreja da Candelária, alguns jovens faziam uma lavagem simbólica dos degraus que levam da calçada à entrada da igreja. No chão, nomes de crianças assassinadas pela violência no estado nos últimos anos.
A lavagem é um dos atos que marcam os 30 anos da Chacina da Candelária, completados no domingo (23). “O que aconteceu aqui a gente não quer que aconteça de novo. Então essa lavagem é uma forma de protesto”, diz Arthur Luiz Costa de Andrade, um dos jovens que lavaram os degraus.
Vinte metros à frente, pinturas com tinta vermelha no chão da calçada, simulando oito corpos, uma referência aos mortos da madrugada de 23 de julho de 1993. Ao lado, uma cruz com o nome das vítimas. Todas mortas por policiais militares no local onde dormiam dezenas de pessoas. O crime teria acontecido porque, no dia anterior, os meninos jogaram pedras em um carro da Polícia Militar (PM).
Trinta anos depois, mais de 20 adolescentes do grupo de percussão Casa do Menor São Miguel Arcanjo, de Nova Iguaçu, região metropolitana do Rio, tocavam os instrumentos em alto e bom som para deixar claro que a memória desses mortos não está silenciada. A professora do grupo, Grayce Andley, explicou que eles fazem esse ato após 30 anos, para mostrar que parentes dos mortos não estão sozinhos.
Nunca Mais
O dia de homenagens foi organizado pelo Movimento Candelária Nunca. Fátima Silva, uma das fundadoras da organização não governamental, explicou à Agência Brasil que o movimento vai além de pedir justiça pelos oito assassinados. “A gente tem hoje crianças morrendo antes de criar seus sonhos, crianças que nem chegam a dez anos de idade. A gente quer avanço nas políticas públicas, protagonismo, que as crianças e adolescentes possam viver em paz nas suas comunidades”, disse a ativista que trabalhava com menores em situação de vulnerabilidade na época da chacina.
Dois policiais militares e um ex-policial foram condenados pelo massacre, os três com penas que superam os 200 anos de prisão. Wagner dos Santos, que foi alvo de quatro disparos, conseguiu sobreviver à chacina e acabou se tornando testemunha para a elucidação do caso. Por questão de segurança, ele passou a viver fora do Brasil. Segundo o Tribunal de Justiça do Rio, o PM Nelson Oliveira dos Santos cumpriu pena até sua extinção, em 2008. Já o PM Marco Aurélio Dias de Alcântara e o ex-PM Marcus Vinícius Emmanuel Borges cumpriram suas penas até receberem indultos, em 2011 e 2012, respectivamente.
Irmã de Wagner, Patrícia Oliveira enxerga o ativismo dela e do irmão como uma forma de combate à impunidade. “A gente luta para que outras pessoas não passem pelo que ele passou, que vários outros familiares passam. Porque não é só a Chacina da Candelária, mas também a de Vigário (1993), Acari (1990), entre outras que acontecem no Rio de Janeiro todos os dias. A [Chacina da] Candelária continua, ela não acabou”, disse à Agência Brasil.
Dentro da igreja, assentos lotados para uma missa e um ato interreligioso. Além do sentimento de dor pelo passado, uma preocupação com o presente e o futuro. Dados mostram que essa preocupação tem motivo para existir.
Um estudo do Grupo de Estudos de Novas Ilegalidades da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), mostrou que, de 2007 a 2022, foram registradas 27 “megachacinas” policiais no estado (segundo a metodologia da pesquisa, quando resultaram em oito mortes ou mais, como na Candelária). Esses crimes representaram a morte de 300 pessoas.
Marielle presente
A advogada Marinete da Silva, mãe da vereadora carioca Marielle Franco – assassinada a tiros em março de 2018 – esteve presente na missa e lembrou que a filha participou, por vários anos, do Movimento Candelária Nunca Mais. Marinete mostrou solidariedade a todas as vítimas de chacinas. “A dor [que sinto] é a mesma, e foi a mesma maneira também, com tiro, uma violência imensa. A gente tem que estar aqui para ajudar e continuar essa luta com essas mães que passam pelo mesmo problema que eu”, falou.
Fátima Silva, do Candelária Nunca Mais, explicou que o dia de manifestação é também um pedido de reparação para famílias de vítimas da violência cometida pelo Estado.
“Você não tem reparação. Você vê hoje mães que perderam seus filhos e que não são acolhidas pelo Estado. Tem mães que ficam com a saúde mental adoecida e morrem sem ver o retorno da justiça. As balas que matam os meninos são pagas por nós, contribuintes. Então, desse mesmo dinheiro que a gente paga, a gente quer reparação”, pede Fátima Silva.
Depois das cerimônias dentro da igreja, centenas de pessoas – grande parte crianças e adolescentes – seguiram em caminhada pelo centro da cidade. Eles levavam faixas e cartazes com pedidos de justiça e políticas públicas. Numa das faixas se liam as campanhas virtuais #vidasnegrasimportam e #dordemãenãotemfronteira.
Respostas de autoridades
Em nota, a PM do Rio de Janeiro afirma que suas ações têm “como preocupação central a preservação de vidas e o cumprimento irrestrito da legislação em vigor”. Ainda segundo a PM, o índice de mortes por intervenção de agentes do Estado caiu mais de 15% de janeiro a maio deste ano, em comparação com o mesmo período de 2022.
A Secretaria de Assistência Social da prefeitura do Rio, também por meio de nota, informa que existe um serviço de acolhimento institucional temporário para garantir direitos de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. De acordo com a secretaria, de janeiro a junho do ano de 2023 foram realizados 2.907 acolhimentos. Atualmente, encontram-se acolhidos 173 crianças e adolescentes.
A Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do estado do Rio informou que desenvolve programas voltados para a proteção social de crianças e adolescentes que têm direitos violados ou ameaçados, como os programas de Trabalho Protegido na Adolescência e de Atenção à Criança e Adolescente em Situação de Risco.
A Agência Brasil entrou em contato com a Polícia Civil, mas, até a publicação desta reportagem, não teve resposta.
Edição: Valéria Aguiar