Com dores, dificuldades para se comunicar e sem qualquer assistência dos governos municipal, estadual ou federal, uma afegã grávida de quase nove meses e que chegou ao Brasil neste domingo (16) precisou contar com ajuda de voluntários para poder ser encaminhada, no início da tarde, a um hospital público de São Paulo.
Fugindo do radical regime do Talibã, que assumiu o poder no Afeganistão em 2021, a afegã grávida chegou ao Aeroporto Internacional de Guarulhos com o marido e uma filha pequena. De posse do visto humanitário concedido pelo governo brasileiro, mas sem acesso à assistência quando chega no Brasil, ela passou a noite no aeroporto, dormindo em colchonetes iguais aos que são usados em academias de ginástica e que são fornecidos por voluntários. E fez as refeições que são distribuídas aos afegãos pela Prefeitura de Guarulhos.
Nesta segunda-feira, com dores, ela buscou o apoio de Aline Sobral, uma das fundadoras do Coletivo Frente Afegã, que tem atuado de forma voluntária com os afegãos que chegam ao Brasil. Sem falar qualquer palavra em português e nem mesmo conseguindo se comunicar em outra língua que não a sua, a afegã (cujo nome será preservado por medo de ameaças) utilizou o tradutor instalado no celular para dizer o que estava sentindo.
Foi então que Aline procurou a Prefeitura de Guarulhos para ver se conseguiria um apoio para levá-la ao hospital. Mas não obteve sucesso.
Houve também a tentativa de buscar atendimento no serviço médico de emergência do próprio Aeroporto de Guarulhos. “No posto não tem aparato para coisas de parto. Eles nos indicaram ir para o hospital. Mas a secretaria [de Saúde] de Guarulhos não tem como mandar um carro, porque sabemos que a demanda deve ser grande”, informou Aline Sobral. “Ela teve outra contração enquanto estava sendo atendida no posto”, acrescentou.
Com todas essas negativas, a voluntária decidiu chamar uma rede de apoio para ajudar a afegã grávida. Ela entrou em contato com Aretusa Chediak, médica do Instituto do Coração (Incor) e fundadora da organização não-governamental Além-fronteiras – Rebuilding Lives, que também tem atuado de forma voluntária para ajudar os afegãos que chegam ao aeroporto. Foi Aretusa quem conseguiu acionar o Hospital das Clínicas de São Paulo para receber a grávida. Ela também deu dinheiro para que Aline pudesse chamar um Uber para que a afegã, o marido e a filha pudessem ser levados do Aeroporto de Guarulhos até o Hospital das Clínicas, em uma corrida que custou R$ 64,94.
A reportagem da Agência Brasil, que visitou o aeroporto no início da tarde desta segunda-feira, acompanhou todo o sofrimento da afegã. Desde o momento em que ela comunicou à voluntária Aline Sobral sobre o seu estado, até o momento em que elas foram procurar ajuda no posto de atendimento de emergências do aeroporto, até a grande espera pelo Uber. Sofrimento que durou ao menos 2 horas, até que um Uber finalmente aceitasse a corrida e que a grávida conseguisse chegar ao Hospital das Clínicas, em Pinheiros, na capital paulista, onde estava sendo aguardada.
“Será que uma mulher, em trabalho de parto, não é motivo suficiente para mandar uma ambulância?”, questionou Aline Sobral. “Ninguém mandou [a ambulância]. Ela está aqui há meia hora esperando o carro do Uber chegar. E o Uber já cancelou [a corrida] seis vezes. E há um risco dela parir por causa da demora. Tentei falar com a prefeitura, que é a única a quem a gente tem acesso. Não temos acesso nem ao governo federal e nem ao estadual. O único que está aqui para ouvir a gente é a prefeitura. E a prefeitura disse que não consegue atender porque não tem carro suficiente. E eu entendo eles”, disse.
Ao chegar ao hospital, a afegã grávida pode finalmente ser atendida e amparada. “Ela chegou agora [por volta das 14h45] e acabou de entrar para a triagem. Agora que vamos saber maiores detalhes. Ela está apreensiva, chorosa. Ela quer que a gente espere mais cinco dias [para o parto] porque todos os outros partos dela foram normais e ela tem certeza que, se esperarmos mais cinco dias, o parto será normal. Ela não quer fazer cesária”, disse a médica Aretusa Chediak, em entrevista à Agência Brasil.
Mais tarde, por volta das 16h, Aretusa comunicou à Agência Brasil que a triagem mostrou que a gestante não estava em trabalho de parto, como se supunha inicialmente, mas não era possível ainda precisar com quantas semanas de gravidez ela estava.
“O HC está tentando um ultrassom ainda hoje para ver essa maturidade e vitalidade do bebê. Pelo ultrassom dá para ter estimativa de quantas semanas ela está. Ela não está em trabalho de parto. Não sabemos precisar com quantas semanas ela está. Ela diz que faltam cinco dias para ela completar 40 semanas. Mas essa é uma fala dela. Aparentemente ela está em uma gravidez avançada”, disse a médica, acrescentando que está buscando um abrigo para a grávida ficar.
Histórico
Desde 2021, quando os radicais do Talibã assumiram o poder, milhões de afegãos têm deixado o país para fugir de um regime que viola seus direitos. O Brasil, por exemplo, passou a se tornar destino de parte desses afegãos quando foi publicada uma portaria interministerial, em setembro de 2021, autorizando o visto temporário e a residência por razões humanitárias.
Desde então, eles começaram a desembarcar no Brasil mas, sem conseguirem acesso a uma política pública de acolhimento, ficam desemparados, contando com apoio de voluntários e da Prefeitura de Guarulhos, que tem contribuído com alimentos e buscado encontrar vagas em abrigos municipais, que são insuficientes para atender a todos eles.
Surto de sarna
Após vários desses afegãos terem sido acometidos por um surto de sarna no aeroporto em junho deste ano, o Ministério da Justiça e Segurança Pública decidiu enviá-los para uma colônia de férias do Sindicato dos Químicos, na Praia Grande. No entanto, muitos afegãos continuam desembarcando quase que diariamente no Aeroporto Internacional de Guarulhos e, sem uma política preestabelecida de atendimento, eles continuam montando suas barracas no local.
Nesta segunda-feira, por exemplo, segundo a Prefeitura de Guarulhos, haviam 23 afegãos vivendo no Aeroporto de Guarulhos. Os voluntários disseram que a situação agora é um pouco melhor do que meses atrás, já que há menos afegãos vivendo no aeroporto e por menos dias.
“No sábado tinham 62 pessoas. E nesse mesmo dia, quatro famílias foram acolhidas. Mas, no mesmo dia, chegaram 55 pessoas”, disse Aline Sobral, em entrevista à Agência Brasil. “Continuam chegando afegãos e eles continuam ficando no aeroporto. E até agora, nada de efetivo foi feito”, acrescentou. “Agora está mais rápido o acolhimento. Eles não ficam aqui mais de sete dias. A média tem sido entre três e quatro dias. Mesmo assim, eles continuam ficando [no aeroporto], sem banho”, acrescentou.
Para Aline, o ideal seria que os refugiados tivessem um lugar definitivo para serem acolhidos. “Mas se tivesse alguma coisa emergencial, que tivesse o mínimo como um banho ou uma cama, seria ótimo para eles. Hoje eles não têm nada. Temos hoje só a prefeitura [de Guarulhos] fazendo essa recepção e a gente [voluntário] entrega uma manta e um colchão. E é só. Aqui não é um lugar para eles ficarem. Ficar em aeroporto é surreal”.
“Houve um certo benefício [com a ida de alguns afegãos para a Praia Grande], mas nossa preocupação é que não temos a quantidade exata de refugiados que ainda vão chegar”, disse o voluntário Hosnir Badawi, do Coletivo Frente Afegã. “A situação não foi resolvida. Ela ainda é bem complicada e preocupante. Precisamos de uma parceria. A prefeitura [de Guarulhos] não tem como arcar com isso sozinha. O que se necessita nesse momento, se pudesse ocorrer, é justamente um local específico para recebê-los. Isso iria diminuir muito os problemas que eles enfrentam. Você chega como refugiado e espera, de imediato, ter algum tipo de acolhimento para te dar muita tranquilidade. Mas isso não está sendo feito. As organizações estão fazendo o possível, mas precisa ter uma força tarefa maior”.
Procurado pela Agência Brasil, o Ministério da Justiça ainda não se manifestou sobre a situação da grávida. O aeroporto de Guarulhos e o governo de São Paulo também não se manifestaram, até o momento.
Já a prefeitura de Guarulhos informou que as equipes do Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante, que fica no aeroporto, têm ciência sobre a gestante que se encontra lá, “mas não foi informada sobre ela ter entrado em trabalho de parto”.
“Essa informação só chegou até nós por meio desta demanda. De acordo com os registros, a gestante chegou hoje ao aeroporto. Como manda o protocolo, assim que o novo grupo chegou, os governos federal e estadual foram avisados para juntos iniciarmos a busca por vagas, que já foi encontrada. Antes de ser encaminhada, a gestante passará por consulta médica para se certificar de que está tudo bem para seguir para o acolhimento”, diz a prefeitura, que acrescentou que não houve chamado para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).
Edição: Fernando Fraga